“As duas fiandeiras”

Em “As duas fiandeiras” de Francisco Gomes de Amorim, entre outras cenas em que o jogo do pau é “personagem” ficam aqui um par de excertos que se destacam:

Amores de Carpinteiro

Ana, jovial e chasqueadora, tomara a precaução de não gracejar com ele. Rosa conservava-se grave, falando pouco, rindo raras vezes, e empregando mais o império e fascinação do olhar, que sabia ser auxiliar poderoso, do que as palavras, que podiam tornar-se imprudentes. Joaquim amava já a fiandeira mais nova; porém não se atrevia, diante da outra, a mostrar preferências; e confessava a si próprio que não hesitaria em casar com Rosa, se Ana ali não estivesse.

Bastaram poucos dias para se estabelecer familiaridade e confiança entre os três. As raparigas iam-se tornando queridas de todas as pessoas da terra, não lhes faltando presentes dos lavradores abastados, nem convites para os serões das melhores casas. Os rapazes cruzavam-lhes por diante da porta, com ares de frangãos em frente de celeiro fechado; e os mais ricos desejavam oferecer a Ana Estela a sua mão e as suas juntas de bois; mas faltava-lhes ousadia para tanto. A assiduidade de Joaquim Bento fora logo notada; e não se sabendo a qual das duas ele requestava, mantiveram-se os outros a distância, e na expectativa; porque o carpinteiro tinha o seu tanto de bulhento, e jogava o pau como mestre. Alguns, que afirmavam não lhe ter medo, em vez de se apresentarem como pretendentes às fiandeiras, trataram de namorar Maria Rosmaninha, persuadidos de que assim o puniam de ter a preferência daquelas.

Romaria de Balazar

(1845)

— O primo José não traz pau? Foi esquecimento de todos os dialhos! Para estas festas não se vem de vergastinha.
— Cuidas que a cousa dará de si?
— Boa dúvida! O Bento azedou-se por o Pedro conversar a Rosmaninha. Eles ambos são homens; porém o Joaquim joga melhor. O que vale ao primo de Laundes é não se escaldar tanto. Se a pancadaria começa, é a valer. Toda a rapaziada de Laundes e Torroso está na romaria e acode logo pelo Pedro, contra os de Avelomar.
— Isso é assim, Manuel; mas, pela direita razão, quem a tem é o Pedro; porque 0 Bento não quis a Rosmaninha, segundo me consta.
— É verdade. E eu cá ponho-me ao lado do de Laundes, embora se diga que não defendo os da minha terra.
— Aqui não há terra; há a gente fazer o que é direito. Em chegando ao arraial, compro logo cajado…
— É preciso que os haja lá, à venda.
— Sim?… Empresta cá a tua navalha — pelo seguro… E vai andando devagar; é um instante, enquanto arranjo qualquer vara de carvalho. Verde, trabalha-se depressa; e não é pior para abrir caminho, se for necessário.
— Carvalho, castanho, ou espinheiro. . . por ai há deles em barda. Pega a navalha e avia-te. O Joaquim vem de casaca, e traz pau! Basta ver isso, para se tomar sentido. Aquilo é grimpador, como pimpão de feira! Não lhe quero mal; porém, nunca engracei muito com gente briguenta e amiga de barulhos. Anda depressa, que eu vou indo devagarinho.

Manuel juntou-se ao rancho; e José alfaiate cortou tão gigante varejão, que poderia, em caso de necessidade, servir para verga de vela de catraia; e foi seguindo os outros, ao mesmo tempo que ia descascando e alisando o pau, Joaquim tornara-se casmurro, desde a fonte dos Namorados. Ana e Rosa também não davam palavra. O seu bando reuniu-se ao do Lameiro, não por simpatia, mas por um desses acasos, tantas vezes funestos, que, em vez de afastar, aproxima os indivíduos que se não amam.

Pedro Laundes travou conversação em verso com Maria Rosmaninha. Joaquim bem desejaria ouvi-los, ou interromper-lhes o dialogo, provocando Pedro; porém não se atrevia a fazê-lo na presença das fiandeiras; e bem percebia que já tinha causado a frieza delas, com a questão de ao pé da fonte.

Roía, pois, silenciosamente o seu despeito, quando viu aproximar-se, coxeando e abordoando-se ao grande varapau verde, o mestre José alfaiate.

— Que é isso? Foi cortar pau novo?
—É  verdade; torci o pé; e se não trouxesse a navalha, estava bem arranjado.

Todos se interessaram muito por saber como tinha sido a torcedura, e se lhe doía.

— Dói como todos os demónios. Fui a saltar aquele valado das silvas, adiante da fonte, e vai, senão quando, escorrego, o zás!
— Caiu?
— No lameiro… que… por baixo… entendes?
— No lameiro? Não tem nenhum salpico de lama!
— Sim?… pois ai é que está o mal.
— Gomo?
— Quis equilibrar-me, vou contra as malditas pedras, e fiquei…
— Com 0 pé torcido. — acudiu Manuel Fernandes.
— Exactamente.— tornou o alfaiate, agradecendo-lhe com os olhos o auxilio.
— E custa-lhe muito a andar?— perguntou Ana Estela.
— Hum… nem por isso. Ao principio, sim; cuidei que ficava ali. Mas, depois que cortei 0 pau, já vai passando a dor.

Dizendo isto, esqueceu-se completamente de que estava com o pé torcido, e saltou uma poça, sem auxiliar-se do pau. Só Joaquim Bento fez reparo nesse descuido, e começou a estudar-lhe os movimentos. Dai a minutos, viu-o entregar sorrateiramente a navalha a Manuel do Lameiro.”

“As duas fiandeiras” Francisco Gomes de Amorim, 1881

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