Um mês antes do dia fixado para o casamento da Chica, houve na aldeia uma festa à Senhora da Luz.

No terreiro em frente da igreja, raparigas e rapazes dançavam e cantavam alegremente.

À tarde um rapaz propôs o jogo do pau para se divertirem, e convidou o Manuel para seu adversário. O lavrador não ignorava a causa daquele convite, Sabia perfeitamente que o António era seu rival, e por isso acedeu.

Jogaram, o primeiro manejando admiravelmente a arma sorria do entusiasmo quase furioso com que António o atacava.

Este, num momento em que o Manuel olhou para a noiva, seguiu-lhe o olhar e estremeceu. Levantou mais o pau e fazendo-o girar em roda da cabeça, deixou-o cair com força na fronte do adversário.

Aturdido pela pancada, Manuel cambaleou e caiu de bruços sem soltar um grito. Desmaiara. Felizmente a ferida era pequena e passadas algumas semanas o lavrador restabeleceu-se.

Madalena Martins de Carvalho em “A Fatalidade” ~ 1891

Flor de Sangue

Por vezes podemos encontrar na literatura portuguesa alguns autores em que se percebe que conheciam profundamente o jogo do pau. Não só neste exemplo temos alguém que viveu num tempo em que esta arte era uma necessidade, como o descreve numa situação característica, de inferioridade numérica para defesa, sua e do próximo, um contexto comum e que ainda é treinado hoje em dia.

“Flor de sangue” – José Maria da Costa, 1886.

Fisiologia do Varapau

Ramanho Ortigão, numa carta e em linguagem descontraída fala da “fisiologia do varapau”.


“(…)Eu vivi muito no campo e sou das pessoas mais entendidas na fisiologia dos varapaus. Em todas as aldeias se distinguem quatro marmeleiros capitais: o do administrador, o do regedor, o do boticário e o do mestre-escola. Cada um deles tem o seu tipo, a sua individualidade, o seu cunho moral.

Diz-me o marmeleiro que usas, dir-te-ei as manhas que tens.

Ora o seu marmeleiro desta noite, desargolado e torto, fez-me efeito da cousa mais aviltante e refece a que pode lançar a mão um homem que é ao mesmo tempo regedor e mestre-escola, representando-portanto simultâneamente no seio de uma paróquia a instrução e a ordem.

Um marmeleiro empenado, na dextra de um preceptor, é um agouro muitíssimo triste para a infância estudiosa. Um cerquinho torto, no punho de um regedor, inculca a tendência manifesta do espírito da autoridade para a parte do arrocho.

Há varapaus que são o vilipendio da moral, o escárnio da lei e a irrisão da sabedoria. Paus tortos, freguesia relassa.

Visite-me as terras morigeradas, aí verá os marmeleiros selectos, lustrosos, direitinhos, estonados, corados, argolados e polidos por mão cuidadosa e sábia.

Eu trouxe um cajado de cada uma das digressões que fiz a pé nas encantadoras aldeias da minha província natal. Cada um deles representa hoje para mim uma data querida. (…)”


Ramalho Ortigão 16 de Janeiro de 1871.

"O senhor Ventura" – Miguel Torga

Um dia, porém, uns marinheiros americanos, de passeio, deram cabo daquela felicidade. Entraram, começara, a carregar no Porto, embebedaram-se, e ás tantas insultaram o minhoto. Sem saberem, coitados, que o Pereira, além de ser bom cozinheiro, sabia jogar o pau. Quando o viram surgir de cacete na mão, os do mar, fiados nas leis do boxe e na musculatura yankee, riram-se. Mas o Pereira cerrou-lhes os lábios duma assentada. Salta para o meio deles, malha daqui, torce dali, parecia que estava a varrer a festa de S. Bento da porta Aberta. Em menos de um fósforo tinha a casa limpa.

(…) E, como aparecessem novamente marujos americanos, o alentejano tentou apaziguar os ânimos, não consentindo que o Pereira arredasse pé das caçarolas. Mas os do Tio Sam vinham com ela fisgada. Queriam vingar os camaradas. E tanto disseram, tanto provocaram, que em dado momento o Senhor Ventura perdeu a cabeça e gritou lá para dentro: – Ó Pereira, anda aqui dar uma ajuda! – Caiu o Carmo e a Trindade. Um da direita e o outro da esquerda, ás cacetadas a eles, não deixaram cabeça sem sangue nem garrafa inteira.

“O senhor Ventura”, Miguel Torga, 1943 excerto em “O jogo do Pau em Portugal: processos de mudança”, Rui Simões, 1990.

(…)

Quer larápios refinados,
que tenham ostentação;
homem de muito dinheiro,
que importa seja ladrão.

Fale bem, tenha palavra,
seja muito… eloquente…
embora não diga nada,
tem um culto reverente.

Mas o pior desta lesta,
este é o meu desconsolo,
os pobres roem as cascas,
os maraus papam miolo…

Os pobres vivem famintos,
quasi sem pão, nem camisa,
outros em risos e festas
sua existência desliza.

Só nos resta a pele e o osso
neste jogo malabar,
oh! que artistas tão distintos,
ninguém os pôde igualar!

Mas quando virá um dia
a terminar esta farsa?
Jogador de pau valente
para varrer uma praça?

Quando surgirá um braço
cheio de força e de orgulho,
empunhando com denodo
o mais famoso estadulho?!

(…)

José Cypriano da Costa Goodolphim – 1907

“As duas fiandeiras”

Em “As duas fiandeiras” de Francisco Gomes de Amorim, entre outras cenas em que o jogo do pau é “personagem” ficam aqui um par de excertos que se destacam:

Amores de Carpinteiro

Ana, jovial e chasqueadora, tomara a precaução de não gracejar com ele. Rosa conservava-se grave, falando pouco, rindo raras vezes, e empregando mais o império e fascinação do olhar, que sabia ser auxiliar poderoso, do que as palavras, que podiam tornar-se imprudentes. Joaquim amava já a fiandeira mais nova; porém não se atrevia, diante da outra, a mostrar preferências; e confessava a si próprio que não hesitaria em casar com Rosa, se Ana ali não estivesse.

Bastaram poucos dias para se estabelecer familiaridade e confiança entre os três. As raparigas iam-se tornando queridas de todas as pessoas da terra, não lhes faltando presentes dos lavradores abastados, nem convites para os serões das melhores casas. Os rapazes cruzavam-lhes por diante da porta, com ares de frangãos em frente de celeiro fechado; e os mais ricos desejavam oferecer a Ana Estela a sua mão e as suas juntas de bois; mas faltava-lhes ousadia para tanto. A assiduidade de Joaquim Bento fora logo notada; e não se sabendo a qual das duas ele requestava, mantiveram-se os outros a distância, e na expectativa; porque o carpinteiro tinha o seu tanto de bulhento, e jogava o pau como mestre. Alguns, que afirmavam não lhe ter medo, em vez de se apresentarem como pretendentes às fiandeiras, trataram de namorar Maria Rosmaninha, persuadidos de que assim o puniam de ter a preferência daquelas.

Romaria de Balazar

(1845)

— O primo José não traz pau? Foi esquecimento de todos os dialhos! Para estas festas não se vem de vergastinha.
— Cuidas que a cousa dará de si?
— Boa dúvida! O Bento azedou-se por o Pedro conversar a Rosmaninha. Eles ambos são homens; porém o Joaquim joga melhor. O que vale ao primo de Laundes é não se escaldar tanto. Se a pancadaria começa, é a valer. Toda a rapaziada de Laundes e Torroso está na romaria e acode logo pelo Pedro, contra os de Avelomar.
— Isso é assim, Manuel; mas, pela direita razão, quem a tem é o Pedro; porque 0 Bento não quis a Rosmaninha, segundo me consta.
— É verdade. E eu cá ponho-me ao lado do de Laundes, embora se diga que não defendo os da minha terra.
— Aqui não há terra; há a gente fazer o que é direito. Em chegando ao arraial, compro logo cajado…
— É preciso que os haja lá, à venda.
— Sim?… Empresta cá a tua navalha — pelo seguro… E vai andando devagar; é um instante, enquanto arranjo qualquer vara de carvalho. Verde, trabalha-se depressa; e não é pior para abrir caminho, se for necessário.
— Carvalho, castanho, ou espinheiro. . . por ai há deles em barda. Pega a navalha e avia-te. O Joaquim vem de casaca, e traz pau! Basta ver isso, para se tomar sentido. Aquilo é grimpador, como pimpão de feira! Não lhe quero mal; porém, nunca engracei muito com gente briguenta e amiga de barulhos. Anda depressa, que eu vou indo devagarinho.

Manuel juntou-se ao rancho; e José alfaiate cortou tão gigante varejão, que poderia, em caso de necessidade, servir para verga de vela de catraia; e foi seguindo os outros, ao mesmo tempo que ia descascando e alisando o pau, Joaquim tornara-se casmurro, desde a fonte dos Namorados. Ana e Rosa também não davam palavra. O seu bando reuniu-se ao do Lameiro, não por simpatia, mas por um desses acasos, tantas vezes funestos, que, em vez de afastar, aproxima os indivíduos que se não amam.

Pedro Laundes travou conversação em verso com Maria Rosmaninha. Joaquim bem desejaria ouvi-los, ou interromper-lhes o dialogo, provocando Pedro; porém não se atrevia a fazê-lo na presença das fiandeiras; e bem percebia que já tinha causado a frieza delas, com a questão de ao pé da fonte.

Roía, pois, silenciosamente o seu despeito, quando viu aproximar-se, coxeando e abordoando-se ao grande varapau verde, o mestre José alfaiate.

— Que é isso? Foi cortar pau novo?
—É  verdade; torci o pé; e se não trouxesse a navalha, estava bem arranjado.

Todos se interessaram muito por saber como tinha sido a torcedura, e se lhe doía.

— Dói como todos os demónios. Fui a saltar aquele valado das silvas, adiante da fonte, e vai, senão quando, escorrego, o zás!
— Caiu?
— No lameiro… que… por baixo… entendes?
— No lameiro? Não tem nenhum salpico de lama!
— Sim?… pois ai é que está o mal.
— Gomo?
— Quis equilibrar-me, vou contra as malditas pedras, e fiquei…
— Com 0 pé torcido. — acudiu Manuel Fernandes.
— Exactamente.— tornou o alfaiate, agradecendo-lhe com os olhos o auxilio.
— E custa-lhe muito a andar?— perguntou Ana Estela.
— Hum… nem por isso. Ao principio, sim; cuidei que ficava ali. Mas, depois que cortei 0 pau, já vai passando a dor.

Dizendo isto, esqueceu-se completamente de que estava com o pé torcido, e saltou uma poça, sem auxiliar-se do pau. Só Joaquim Bento fez reparo nesse descuido, e começou a estudar-lhe os movimentos. Dai a minutos, viu-o entregar sorrateiramente a navalha a Manuel do Lameiro.”

“As duas fiandeiras” Francisco Gomes de Amorim, 1881

“A Sibila” Agustina Bessa-Luís

sibilaSubitamente, um redemoinho de desordem ferveu, alastrando logo com um corricar de cachopos que se arrastavam sob as pernas do poviléu, e o escândalo ainda morno, ainda lento, das mulheres que reajustavam na nuca os lenços de algodão e buscavam no poial das portas um degrau seguro para abrigadamente presenciarem. Mas a luta embraveceu, magotes como vagas chocaram-se, confluindo das margens do largo, ouvia-se entre gritos o seco rumor dos paus que embatiam, estalavam, eram lançados longe, caindo sobre as tendas ou os arraiais das louceiras. E, então, numa clareira que se foi desenhando mais vazia, mais circular, destacou-se o pequeno vulto de Francisco Teixeira que avançava, grave e tranquilo, repelindo à sua volta o eriçado dos marmeleiros que combatiam, iam cedendo, recuavam, dispersando-se nas alas da multidão que se agitava, ondulando como um corpo que voga na maré. Havia sangue; os andores tinham parado na ladeira e os anjos choravam, não se atrevendo a abandonar o posto, suados sob as vestes debruadas com pele branca, de coelho, as botas amarelas de duraque muito atufadas na poeira. Sob o pálio, o abade, recolhido, mansamente esperava, entre as opas vermelhas cujas pregas o sol riscara de violeta e as filas de crentes ajoelhados sobre os lenços de bolso. «Então essa guarda?»

“A Sibila” – Agustina Bessa-Luís, 1954.

Uma Tragédia na Caça

(conto completo em https://archive.org/stream/caadasportugue00aauoft#page/170 )

— Espere, que eu já lh’a dou — e dizendo isto o guarda correu à casa. O doutor seguiu-o, mas poucos passos tinha dado, no pequeno terreiro que a defrontava, que já o homem estava de volta, com uma foice roçadora, e arremetia contra ele, atirando-lhe estas palavras:

— Tome lá a perdiz — acompanhadas dum golpe temeroso à cabeça — uma pancada redonda — como lhe chamam no jogo do pau, e que dada com uma foice é sempre mortal.

João de Bettencourt conhecia todos os segredos daquele jogo. Nas suas visitas a Salvaterra frequentara os melhores jogadores do Ribatejo, aperfeiçoara-se em Lisboa, na escola do celebre José Maria, o Saloio, e nos lugares por onde passara tinha deixado recordações da força do seu braço, da sua destreza e agilidade. Deu um salto à retaguarda, e a foice passou-lhe, como um relâmpago, diante dos olhos.
Cresceu o outro sobre ele, e atirou-lhe o segundo golpe também atravessado, que não o alcançou, e ao terceiro, de ponta, o doutor, furtando o corpo, desfechou. . .

O estrondo do tiro confundiu-se com um grito: o malvado caiu. Estava morto!

“Uma Tragédia na Caça” – Zacharias d’Aça, 1898.

As arrecadas

asarrecadas

No outro dia, manhãzinha cedo, havia de o Neto marchar para a feira, com os dois novilhos à soga.

Os animais eram galhardos, escorreitos e sãos, benzesse-os Deus; de dez moedas para riba com certeza davam. E o Neto’ botava já contas à vida no destino daquele dinheiro: — três para a décima, quatro para emprestar a juros de um alqueire cada, e as restantes, com essas compraria as arrecadas da filha.

Ai! as arrecadas! Até que enfim, a Adelaide ia ter umas arrecadas; e só de lhe lembrar o alegrão que a cachopa sentiria ao ver as ricas argolas de ouro,  enramalhetadas e lindas, já todo se consolava o pai.

— Tu como as queres, cachopa?

De qualquer geito ela as queria; como fosse da vontade de senhor pai…

— Grandes, hein ?

— Sim, ele sempre será melhor.

Não mostrava muito empenho — sempre seria melhor… Mas os seus belos olhos luziam já, como se estivessem vendo ali bem perto, ao alcance da mão, os enormes brincos, de um lavor complicado, com florinhas em relevo, e sua pedra de cor viva, a dar-lhes graça.

O pai desejava, porém, informações miúdas e precisas; não fosse ele, na sua ignorância, comprar coisa fora dos termos.

— Pintalgadas, hein, que te parece?

Parecia-lhe que sim. Uns “não me esqueças” pequeninos em toda a volta, ficariam a calhar. E numa palavra — o senhor pai que visse bem se lhas podia, arranjar iguais ás da Teresa. Lembrava-se ?

Sim, tinha uma lembrança, não havia duvida.

— Pois, está dito, como as da Teresa: grandes, bem trabalhadas e com florzinhas. Dito.

E festejando-lhe a bonita cara com a mão calosa e larga, deu as boas noites.

Caminho do quarto, fez ideia da impaciência em que o esperaria a filha no dia seguinte, das vezes sem conta que ela iria à janela a ver quando o lobrigava na volta da estrada, ao longe, entre os dois grandes pinheiros mansos.

— Presunçosas, presunçosas! — dizia baixo — Que ele também se a presunção fosse tinha…

E pegou a despir-se para se meter na cama. Mas a voz da filha ouviu-se fora.

— Senhor pai, olhe…

— O que é rapariga?

— Se me comprasse também uma caixinha prás arrecadas…

— Compra-se a caixinha, fica descansada.

-Olhe.

— Hein.

— Se eu fosse consigo ?…

— Hom’essa! E quem há de tratar da obrigação?

— Falava a alguém.

— Tens medo que me roubem no caminho?

E largou a rir.

— Cá de mim, não. Mas…

— Nada, fica, fica. Aquilo não é romaria; não há lá danças. Negócios, tudo negócios. Mulheres não andam pelas feiras.

Ela suspirou, tinha grande vontade de ir. Mas, enfim…

— Boa noite, disse desconsolada.

— Boa noite.

* * *

Mal o dia rompeu, logo o Neto desceu à corte, a aparelhar os novilhos. Passou-lhes a soga nos chifres, tirou-lhes com cuidado a poeira do pelo;e depois de ir buscar atrás da porta a aguilhada de marmeleiro, passou os dedos no ferrão a ver se estava agudo, botou a jaqueta ao ombro e partiu, acenando aos novilhos que o seguiram aos saltos.

A feira ficava longe, num soito largo, onde castanheiros velhos e enramalhados punham na relva fresca enormes manchas de sombra.

Havia um grande chocalhar de campainhas: os vendedores passeavam os animais, encarecendo-os e gabando-lhes a boa andadura, o ensino apurado, a submissão e a valentia. Discutiam-se defeitos, falava-se com ciência em névoas dos olhos, nódoas nos dentes, – peito aguado, má boca ou mau trabalho.

Sobre pedras, alguns vendedores tilintavam uma a uma, punhados de libras, cuidadosamente, verificando se eram das boas. Morgados e ricaços, de esporas e chibata, botas altas de montar, passavam devagar, cumprimentando popularmente em grandes mãosadas, apreçando os bois, com grande ar de entendidos. Um abade — troquilha, de chapéu largo, jaquetão comprido e cigarro na boca, tentava manhosamente, num contracto retórico, impingir aos fregueses uma égua escanzelada e velha.

Palrava-se muito: em grupos havia mesmo ralhos, palavras feias, princípios de bordoada grossa.Junto ás pipas, decilitrava-se, em saúdes, por grandes malgas vidradas.

O Neto chegou tarde; mas em volta dos novilhos armou-se logo uma roda de compradores. Alguns arrebitavam-lhes o beiço para ver a idade, miravam-lhes bem as patas, comentando a perfeição dos cascos. O que ali estava à vista de todos (o Neto o afirmava) era trigo sem joio: animais de uma cana só.

— Quanto quer p’los bichos, ó tio ?

Dez moedas ; era o preço.

— Puxadote, hein? puxadote.

E remiravam ainda, separadamente e miudamente o corpo de cada animal, passando-lhe a mão por todo o comprimento do lombo, ameigando-o com pancadinhas doces. A junta despertava interesse.

— Diga lá a ultima palavra, a ultima.

O Neto declarou que a ultima palavra era — dez moedas. Nem mais nem ontem. Nunca fora homem de regatear; nada, isso era bom para ciganos.

— Nove moedas, toma lá dá cá; escusa de ir mais adiante…

E faziam já menção de rapar do bolso as nove moedas, e contar-lhas ali num pronto.

— Por menos de dez ninguém mos leva.- É escusado.

— Nove e meia.

— Nada.

Mas pessoas, em volta, metiam-se no contraco. Verdade, verdade, seu Neto. Nove moedas e meia era um bom preço ; não senhor, era um bonito preço.

Altercou-se; alguns iam-no agarrar, arrastavam-no fora do grupo, falavam-lhe devagarinho ao ouvido. Que diabo, homem, a oferta não era de desprezar. Visse bem que eram nove moedas e meia — dez libras e seis tostões ! Era um alto negocio, um negociarrão!

Outros segredavam-lhe amigavelmente nue não cedesse; o outro chegaria ás dez. Estava encantado com os animais.

Mas um vélhote chegou. Pediram-lhe o parecer.

— Dez moedas é de mais, você que diz ? perguntou o comprador. — Eu até ás nove e meia ainda dou.

O velhote adquiriu maneiras de juiz, prestes a julgar uma causa celebre. Pediu fogo a um deles, acendeu pachorrentamente o cigarro.

— Então você quer dez moedas ?

O Neto acenou com a cabeça.

— Você (para outro) dá as nove e meia?

— Saltadinhas.

— Pois ai vai o meu conselho; vende-se os bois p’las dez menos um quarto, e o outro quarto vai-se beber de vinho, em súcia.

— Aprovado.

— Dito.

Contou-se ali o dinheiro, e foi-se beber o quarto em súcia.

Depois o Neto partiu; tinha umas coisas a fazer; tinha que tratar dos negócios, deixou ainda os amigos discutindo de malga na mão, em volta de uma pipa.

Abalou para o lado dos ourives; correu-os todos, de cabo a rabo, analisando bem os brincos pendurados em cartões verdes à volta das barrancas, ou metidos em caixinhas, por cima dos mostradores.

Custava-lhe o decidir-se; por fim, um tanto namorado por dois ricos argolões, fortes e caprichosamente floreados, perguntou a medo o preço.

Veio avia-lo a mulher do ourives, uma senhora alta, gorda e loira, de mãos finas e brancas, bonitos modos, falas muito doces; a sua voz tinha um tom estrangeiro, carregava muito nos rrs.

— Os lindos brrincos custam ao sinhorre trreze mil réis.

— Não faz um abatimentozinho ? aventou o Neto, vagamente.

— Não sinhorre, não pode serre menos.

E convencia-o com argumentos brandos.

— Eu pode venderre outrros mais barratos; mas estes são bons. Muito na moda; muito bons.

Então, tirou da algibeira a bolsa e pôs-se a contar o dinheiro; queria também uma caixinha, daria mais a mais alguma coisa se preciso fosse.

Ela arranjou-lhe uma caixa preta de forma triangular, meteu-lhe dentro as arrecadadas, cobriu-as preciosamente com frouxel branco.

— Pronto.

E com um gesto gracioso apresentou-lhe amavelmente a caixinha; ele pagou sorrindo. Pediu ainda um papel para embrulhar, e sepultou com cuidado os brincos na algibeira de dentro.

Caiam as trindades quando largou da feira. Ia-se gente embora, puxando os bois à sóga; apenas alguns feirantes meio bêbados pairavam ainda ao redor das pipas.

Estrada fora o Neto de novo pensou na filha. Que alegrão! Botava as mãos ao peito, palpava a saliência da caixa. Era verdade, levava ali a prenda tão cobiçada, há tanto tempo prometida… E adivinhava-a na janela. espiando a estrada, apesar da escuridão da noite, julgando a todo passo vê-lo chegar, subir a escada, atirar-lhe ao regaço as belas arrecadas doiro. A moça por certo ficava doida. Que alegrão, que alegrão!

E alargava o passo.

A noite era negra e silenciosa: raras estrelas tremiam apenas escassamente no azul enevoado do céu; a espaços o piar melancólico dum mocho varava o ar; o vento soprava surdo por dentro dos pinheiros.

O Neto, de mãos nos bolsos da jaleca, varapau debaixo do braço, caminhava.

Perto havia uma encruzilhada de má fama. Diabo! Um pressentimento lúgubre, quasi o fez parar; mas tentou recuperar sangue frio. Ora bolas, que crença medrosa! Pois não queriam ver o homem com receio de passar a encruzilhada? Tinha graça!

E estugou mais o passo, ansioso e ofegante.

Mesmo no sitio em que as estradas se cruzavam, três homenzarrões, de cacete erguido, num pronto o rodearam.

— O’ amigo, poise o que leva!

Ficou sem pinta de sangue. Logo três, Senhor, logo três! Quis fingir-se um pobre diabo, sem dinheiro para lhes poisar, que o deixassem seguir o seu caminho, que o deixassem.

— Vá de cantiga, berram-lhe, pois o que leva!

Pois ele havia de entregar assim, imbecilmente, passivamente, o preço dos seu bois, as arrecadas da sua filhinha?…

— Eu cá de mim não levo nada comigo. . .

— Isso é que vamos ver.

E um dos salteadores adiantou-se, ia deitar-lhe sofregamente a mão ás algibeiras. O Neto recuou dum salto e despediu-lhe rija pancada à nuca; mas um companheiro aparou o golpe; com destreza, e então os três deram de malhar no pobre homem, brutalmente, em cacetadas que o, mediam de ilharga a ilharga, desvairados, furiosos, até que mais certeiro golpe, apanhando-o pela cabeça, deu com ele em terra, exangue, sem sentidos…

Foi um carreiro do lugar, vindo de Coimbra nessa noite, quem o achou na valeta, imóvel, mudo, numa poça de sangue, sem dar cor de si. Carregou-o jeitosamente até ao carro; ali o depôs sobre a palha, que havia crescido da ração dos, bois.

Eram altas horas quando chegaram ao lugar; a Adelaide estava numa aflição, com tal demora. E apenas lhe disseram do ocorrido, largou a gritar, desfazendo-se toda em lágrimas, juntando as mãos num desespero, soluçante, doida de dor.

— Bem me adivinhava o coração, bem m’o adivinhava. Ai meu rico paizinho,que m’o mataram. Galgou as escadas, e ela mesma, com a ajude do carreiro, trouxe o Neto pelo corredor, fora até a cama.

Vieram vizinhos, numa balburdia, solícitos, oferecendo o seu préstimo, todos empenhados em dar o seu auxilio naquela desgraça. Um deles foi chamar o medico.

Afinal, o homem estava apenas desmaiado. Tinha a cabeça ferida em duas partes, nódoas negras em todo o corpo, a cara toda ensanguentada, mas havia de salvar-se. E aplicaram só de pronto mésinhas.

A Adelaide ficou a rezar fervorosamente à beira do leito, com os Olhos no pai. Pela volta da madrugada é que ele se voltou debaixo da roupa.

— Ai, és tu, cachopa?

— Senhor pai! E beijou-lhe as mãos.

— Moeram-me de pancada… Por pouco me não mataram.. Roubaram-me…

Teve um suspiro fundo, que o abalou todo e fez torcer de dor, fincando os dentes nos beiços.

— Lá se foi o dinheiro dos novilhos…

E como reparasse que ela soluçava muito:

— Não chores, não; pra que? Perderam-se os novilhos? As vacas tornam a parir.

Suspirou outra vez. E depois, mais dolorosamente:

— O pior foi roubarem-me as arrecadas!

Armando Erse de Figueiredo (João Luso)
em “A Novela Semanal” 16 de Maio de 1921

 

É Valente?

Eduardo_de_Noronha
Eduardo de Noronha

— Pois Luiz Alves, na sua qualidade de soldado de cavalaria miguelista, dos celebres dragões de Chaves, tomou parte em todas as ações em volta do Porto, de Lisboa, nas batalhas de Almoster, da Asseiceira, e obteve uma condecoração pelo seu valor em campanha.

— É valente ?

— Valentíssimo. De génio brigão, irascível, varreu feiras a pau, desarmou escoltas e fugiu umas poucas de vezes ao braço da Justiça. Respondeu por fim no julgado de Vila Pouca de Aguiar, a dezoito processos instaurados por diversos crimes. Defendeu-se alegando que em todos os demais estava inocente e que apenas matara dois homens em legítima defesa.

“A sociedade do delirio” – Eduardo de Noronha, 1921