Aleijões sociaes

Cena de jogo do pau em teatro do sec. XIX
SCENA XI – MATHIAS, PEDRO, THEREZA, DOMINGOS

DOMINGOS de varapau na mão, áparte.
-Lá está o Pedro amarrado à moça !

PEDRO à parte
O Domingos cançou-se de esperar e vem aqui procural-a; cuida que me mette mêdo por ser mais rico?… Pois não a leva assim, com os dianhos ! 

TEREZAvendo Domingos
Ai, meus peccados ! São quasi horas de jantar e eu aqui posta de conversa !

DOMINGOS 
-Pódes conversar, Thereza ; eu ajudei tua irmã a dar de beber ao gado.

PEDRO, a Thereza
Queres que eu te acompanhe a casa ?

DOMINGOS, sorrindo
-Ella terá mêdo ? Precisas de quem te guarde, moça ?

PEDRO, a Domingos
-A cachopa estava a fallar comigo ; não tens cá que dizer chacotas, ouviste.

DOMINGOS, encostando-se ao pau
-Apósto que me bates, se eu brincar com ella ?

THEREZA
-Jesus ! Não façam tolices, por amor d’isso, vou-me já embora.

Vae-se.

SCENA XII – PEDRO, DOMINGOS, MATHIAS

PEDRO, querendo acompanhal-a
Disse que ia comtigo, está dito ! Tambem não tenho mêdo que me engulam.

DOMINGOS, atravessando-lhe o pau diante das pernas
-Não falles assim, homem !

PEDRO, levantando o seu pau
-Agora, pagas-m’o

DOMINGOS, fazendo jogo
-E tu a mim !

Fórma um sarilho, correndo sobre o Pedro ; este, recúa, defendendo-se, em toda a largura do terreiro, e quando chega à parede, attaca e obriga Domingos a recuar até ao lado opposto.

MATHIAS
-Rapazes ! rapazes !… accomodem-se, com a bréca ! vejam se se estragam, que não podem depois ir para o Brazil !

Os dois continuam jogando o pau, ora avançando um, ora outro

SCENA XIII

PEDRO, DOMINGOS, MATHIAS, DIONISIO

DIONISIO, correndo, com um varapau e fazendo jogo de longe
-Funga-lhe a venta, com seis centos diabos ! Jogam como duas fragatas ! Mas se se matam ou quebram as cabeças, não os levarei d’esta viagem. Alto ahi ! (metendo o seu pau de permeio) Alto ahi ou a coisa é comigo !

DOMINGOS, ensarilhando o pau para ele
-E que dúvida tem ?!

Atira-lhe uma paulada, que Dionisio varre, correspondendo-lhe com outra que lhe parte o pau

DIONISIO, rindo
-Eu sou mais duro de roer, meu filho !
-Aprendi com o Joaquim Cordoeiro, que era pimpão de feira, e um mestre de se lhe tirar o chapéo ! Mas dou-te a minha palavra de que tambem não trabalhas mal ; (apontando para Pedro) e cá o rapazote não te fica atraz !

PEDRO, a Mathias 
-Conte comigo, tio Mathias.

DOMINGOS, a Pedro
-Ó moço, isto acabou aqui. (dando-lhe a mão)
-Não te vás embora por minha causa ; e casa com a Thereza, se queres, que eu não me atravesso diante ti.

PEDRO, tomando-lhe a mão
-Obrigado ; estou resolvido a ir tentar fortuna

DOMINGOS
-Olha, eu não quero casar, homem ; foi tudo uma asneira. Pareceu-me que andavas a desafiar-me e por isso te fiz frente ; mas sou teu amigo e cedo-te o campo como se fosses meu irmão.

PEDRO
-Agradeço-te essas palavras, Domingos ; depois de ouvi-las, com mais razão devo partir.

Domingos fica pensativo.

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“Aleijões sociaes ; O casamento e a mortalha no ceu se talha” – Francisco Gomes de Amorim (1870)

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