O Bordão contra o Bulhão

-Cena com homem armado de bordão a defender-se de 2 assaltantes armados com faca (Bulhão).

“Uma noite, — noite de Natal, — voltava Pêro da costumada romagem à ermida da sua fiandeira, e acertando de passar pelo beco de Martin-Alho observou que alguém, disfarçado com uma manta de cambolim guarnecida de passapelo, se desviava para o deixar passar.

Conjeturou Pêro que algum fidalgo andava ali arruando por motivo de aventuras que bem eram de supor, e nada achou de extraordinário: ele também arruava…

Andadas porém algumas dezenas de passos, percebeu que o desconhecido se movia para ele, a distância, sem o perder de vista; e, quási ás portas de D. João de Noronha, percebeu igualmente que dois vultos estacionavam, ladeando a rua.

— Talvez a ronda, — pensou Pêro.

Entretanto, da banda do primeiro desconhecido que Pêro topara, ouviu-se um prolongado silvo, e os outros dois vultos, adiantando-se para a frente de Pêro, interrogaram :

— Hou-lá, senhor rufião, ; que fazeis a deshoras, com o bordão que sobraçais? Ignorais o que as leis defendem? — Pêro, supondo falar com a ronda, ia responder, quando um dos dois vulto, arrancando do bulhão, cresceu para Pêro. Este porém, brandindo a tempo o pesado bordão, fez voar nas sombras a arma traiçoeira e partiu o crânio do agressor. Metia-se de permeio o segundo vulto, mas Pêro, vibrando-lhe ao peito violenta pontuada, fê-lo cair de costas, golfando sangue.

Livre dos dois sicários, e acreditando desde logo que eles não procediam por si sós, meteu-se de um salto dentro de casa, e ficou espiando os sucessos da rua.

Dos agressores, prostrados no solo, acercou-se o desconhecido que seguia Pêro desde o beco de Martin-Alho, e, dominado por visível inquietação, tentou erguê-los. Um estava inerte, morto; o outro gemia e golfava sangue; pôde contudo levantar se, apoiando-se no braço do adventício, que lhe disse:

— Caminha, que mal nos vai, se a ronda passa.

— Não com pressura, que as forças me falecem, senhor. — E os dois afastaram se, protegidos pela noite.

Decorrido talvez um quarto de hora, passou a ronda. Os guardas tropeçaram no sicário estiraçado na rua, e reconheceram um cadáver. Houvera certamente crime e cumpria desvendá-lo, começando-se por inquirir a mais próxima vizinhança. Bateram á porta de Pêro, que espreitava da Incarna e perguntou o que dele desejava a ronda.

— A pé estais, por esta hora? — disseram os guardas ; — testemunhastes pois o ocorrido na rua?

— Sim, testemunhei. Esse que aí jaz, e outros que fugiram, me quiseram tirar a vida a golpes de bulhão ; lutei e, por me defender, com o meu bordão prostrei um.

— Haveis de dizer isso ao senhor alcaide, que de vossa defesa não podemos julgar.

— Do melhor grado, senhores, e agora mesmo se vos praz.

— Andai connosco, trazei vosso bordão e lá direis de vossa justiça.

Confessado o assassínio, e enquanto as justiças da corte procediam ás necessárias pesquisas, o alcaide mandou recolher Pêro de Alenquer na prisão do Tronco.”

“Amôres de um marinheiro; narrativa historico-romantica”, Candido de Figueiredo, 1898

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