Portugal no tempo em que o jogo do pau era popular

Comparação do contexto da violência em Timor e Portugal do século XIX e inícios do século XX.

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Em Portugal no tempo em que o jogo do pau era popular como as artes marciais aqui agora

Como sempre que se fala em violência em Timor aparecem uns quantos malais iluminados a sentir-se superiores por virem de países onde “nunca há porrada e toda a gente vive numa harmonia social perfeita” (antes fosse!), é bom lembrar pelo menos como eram as coisas há uns tempos nessas terras. Na Austrália havia caça organizada ao aborígene. Em Portugal era assim há umas décadas:

“Podemos dizer o mesmo – mas com mais certeza – das manifestações de violência que, por volta dos anos 20 e 30, acompanhavam geralmente as romarias e, mais concretamente, delas faziam parte ritual.

Não nos referimos só às disputas entre jovens que podem ter origem em rivalidades amorosas, sobretudo quando os rivais pertencem a grupos territoriais diferentes (717), nem às frequentes brigas provocadas pelo vinho (718). Eram outrora comuns e hoje não são raras (719). Referimo-nos, sim, a verdadeiras guerras entre aldeias, que explodiam, quase sistematicamente, no decurso das romarias e suficientemente recentes para que os velhos se lembrem de nelas terem participado e os mais jovens de a elas terem assistido. Se os velhos que entrevistámos são pouco loquazes relativamente aos aspectos sexuais da festa no tempo da sua juventude, os seus testemunhos são, pelo contrário, constantes e explícitos e as emoções ainda bastante vivas no que diz respeito a estas batalhas, permitindo-nos assim considerá-las como parte integrante da romaria. O pároco de Baçal relata fielmente alguns exemplos do fim do século XIX e princípios do século XX: alguns duraram um dia e uma noite, outros saldaram-se por mortos e dezenas de feridos (720). O pároco de Foz Côa mostra a inserção ritual e o desenrolar esperado e estereotipado destas batalhas na romaria da sua paróquia, até uma época mais recente. A naturalidade com que refere a continuação jovial do arraial, imediatamente após a separação dos adversários pela polícia e o transporte dos feridos (ou eventualmente dos mortos), mostra bem o carácter inelutável e sistemático desta fase da peregrinação (721). De alguma forma também este sangue fazia parte da festa.

(…)

As descrições detalhadas que recolhemos directamente dos actores de outrora centram-se na rivalidade entre aldeias (722). Antigas discórdias por vezes não resolvidas: «Discutiremos isso na romaria», velhos ressentimentos herdados de outra geração e que determinam uma agressividade latente, solidariedade entre os jovens «que começaram», ou então, muito simplesmente, recusa de aceitar uma humilhação ou uma injúria imediata… todos estes motivos podem conjugar-se – e ligar-se em torno de uma fatalidade própria da romaria – num fundo de hostilidade e de alianças tradicionais de que já não se sabe a origem. (…) Uma oração de joelhos, depois, agitando ameaçadoramente os cajados, um grito: «Viva Tinalhas!» (…) E era então que frequentemente estalava a briga. Entre homens. A pau e pedra. (…) Extremavam-se os campos, sempre os mesmos: Salgueiros e Póvoa de um lado, Juncal, Freixial e Tinalhas do outro (724).

(…)

Os antigos combatentes estão de acordo acerca dos factores desta evolução que puseram termo às guerras de aldeias: a escola, a Guarda Nacional [Republicana], os sermões do pároco «quando ele é bom…». “ in Pierre Sanchis – Arraial: Festa de um Povo – as romarias portuguesas. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1992, 2ªed, p. 175-177

Ou ainda:

Ernesto Veiga de Oliveira – Festividades Cíclicas em Portugal. Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, pp.323-324 (Citado em O jogo-do-pau como representação de estatuto e hierarquia nas sociedades tradicionais): “E era o «varrer» da feira ou do terreiro, refregas épicas, verdadeiras lutas campais, de paus que cruzavam no ar, no furor das pancadas, num jogo largo de feira ou «varrimento» (…), entre nuvens de pó, no meio da gritaria das mulheres que fugiam em todas as direcções”.

O assunto também foi tratado por autores de ficção que retratavam nos seus romances a sociedade daquele tempo. Transcrevem-se de seguida alguns excertos de Terras do Demo [ Aquilino RIBEIRO – Terras do Demo. Lisboa, Círculo de Leitores, 1983] :

“(…) -Eh, rapaziada da Seitosa – disse ele -, então que febre vos fazem as vacas?

-Ainda aí apareces, filho de sete curtas!? – increpou o Zé Narciso. – Vais pagar o descaramento…

E à mão tente despediu-lhe o lodo à nuca. O Brás aparou a pancada no ombro e respondeu-lhe com uma chuçada valente do sombreiro à arca do peito.

O outro pulou e, trás, trás, só deixou de bater pela cabeça, pelos braços, pelo corpo todo, quando o viu estrumado por terra, a roncar.

O Espadagão vinha com uma enxada para lhe britar a cabeça, mas o Cláudio vendeiro deitou-lhe o gadanho e o golpe foi quebrar-se nas costelas:

– Conho, em homem no chão não se dá! (…) [pág. 134]

Passavam maltas, de varapau a estreloiçar contra varapau, varrendo nas arrecuas do batuque o terreiro coalhado de gentiaga: Viva Lamosa! (…) [pág. 136]

Entre eles nem ficava chão para cair um alfinete. E por entre estes e as vareiras, as maltas e ranchos cavalavam. Lá rompia Granjal de lodo no ar, tau-tau, viva a rusga! (…)

Aí disparava um cavaleiro, todo farófia, chapéu de aba larga, pau de choupa entalado debaixo da perna:

– Olá, gentes, abram passagem!

Bem arreada besta, crinas rentes, franjas na retranca, rifadora por de mais. O ar dele era rebentio, com a pinta de rico, e o poviléu apartava-se à banda. Mas lá desembocava outra malta:

– Viva Tabosa!

– Viva!

– Viva até que morra!

E arremetia por ali dentro, aos safanões, ó cetrás, em borborinhos de poeira, num zafarrancho de mil demónios. (…) [pág. 241]

– Foge! Foge! – exclamou a Zabana para Glorinhas diante dum roldão de caceteiros em enovelada correria.

Eram as maltas do Granjal e da Vila da Ponte que se acometiam, naquela sua inveterada rixa de povos fronteiriços e forçudos. Emborcando tarimbas do negócio e trilhando os dorminhões, acossado pelo estreloiçar dos paus, o poviléu varreu às bandas.

Glorinhas e a Zabana meteram para a porta do santuário, em que uma onda medrosa se atropelava. A espaldas delas, retiniam pragas, gemidos e gritos de aqui-d’el-rei. Mas acudia a tropa e os desordeiros tresmalhavam a pés de cavalo. Curioso, o povo refluía sobre o lugar da refrega, que durara o tempo dum credo. Escabujava no chão homem ferido, se não morto, e vozes de mulher gemiam, testemunhando a justiça do céu e da terra. (…) [pág. 257]

Se nas primeiras décadas do séc. XX houvesse malucos azuis e um blog “Portugal-Online” ser-nos-ia naturalmente aí explicado que a cacetada da velha que havia nas aldeias portuguesas existia precisamente por causa de uma conspiração organizada pelos espanhóis, pelo Presidente Bernardino Machado, pelos monárquicos e pela Nossa Senhora de Fátima.

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