Algo para varrer

A varrimenta é o movimento base do jogo do pau contra vários adversários, é tão fundamental que no livro de Joaquim Ferreira “Arte do jogo do pau”, do século XIX, quase todas as pancadas são “varrimentos” ou “sacudires”. Mas além de um nome característico e genérico, esta designação de alto valor simbólico acarreta uma série de funções sem as quais a sua denominação não só não faz sentido, como perde toda a carga histórica, natural da sua origem bucólica. Este nome não surge por acaso, mas sim, mesmo sendo uma designação metafórica, como a mais simples e utilitária descrição do objetivo desta ação.

E o objetivo é muito simplesmente o de varrer tudo o que apareça na frente, a varrimenta serve assim de pancada, como defesa de outra pancada, ou pancada direta para bater. No caso de nos vir a alcançar uma pancada, ela serve como defesa, varrendo a vara adversária. No entanto, não se trata de uma normal defesa que fique bloqueada, mas sim numa defesa que varre a pancada do adversário e continua seu caminho incólume, só assim poderá ser uma varrimenta. Tal como uma vassoura não é travada nem desviada pelo peso do pó que varre, também uma varrimenta no jogo do pau não deve parar nem ser desviada, mas sim persistir na sua trajetória, mesmo no caso de embater contra outra forte pancada.

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Grupo de Jogo do Pau de Bucos nos anos 60 – Jogo do meio.

Esse varrer não é no entanto, feito com força bruta, nem com a utilização de um “braço” maior na alavanca da pega da vara, mas sim com a rotação imprimida na vara com o auxilio da rotação de todo o corpo. No primeiro caso, utilizando força de braço, não só mais rapidamente o jogador cercado de adversários se cansaria desses músculos específicos em ataques que têm que ser necessariamente contínuos e à máxima velocidade, como a técnica só funcionaria para jogadores fortes de braço, no entanto, com a utilização correta da técnica, mesmo um jogador não tão forte fisicamente, consegue imprimir o peso do seu corpo na vara, podendo assim varrer com uma força que não lhe seria possível apenas com o músculo de um braço menos desenvolvido. No caso de se utilizar uma alavanca de braço maior, para varrer, afastando as mãos, isso também dificultaria a utilização do corpo na pancada, impossibilitaria a ação de atirar o pau, que faz com que naturalmente e sem grande esforço este ganhe velocidade, como também, e o que seria provavelmente o pior, perderia um alcance significativo, que é vital manter, quando cercado de adversários.

É importante que, quando funcionando como defesa, a pancada do adversário seja realmente varrida, pois, estando numa situação de inferioridade numérica, qualquer ação que atrase o segundo ataque do adversário, dá-nos uma pequena abertura, em termos de tempo e espaço, para pelo menos podermos resistir mais algum tempo. Esse desequilibro no adversário, causado pelo varrer da vara, da-nos a nós tempo e abre caminho para fazermos um segundo ataque, que deve obrigar o adversário a recuar um passo na defesa. Se não cumprirmos pelo menos o objetivo de obrigar o adversário a recuar, então, inevitavelmente ficaremos sem espaço, o que com um adversário pela frente e outro pelas costas, é uma posição que rapidamente se torna impossível de gerir.

A varrimenta, assim, para cumprir a sua função, não deve só varrer a vara do adversário, mas indiretamente também o próprio adversário, obrigando-o a recuar. Isto é tão mais crucial quanto maior for a quantidade de adversários que nos cerquem.

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Mestre Nuno Russo a demonstrar técnica de jogo do pau contra vários adversários

Ao treinar da forma tradicional, com varas de madeira, é obviamente muito perigoso fazê-lo com os adversários de fora a atacar, pelo que seria facílimo haverem acidentes, no entanto, é essencial treinar com os adversários a pelo menos darem o pau a bater, pressionando com a distancia e reagindo aos movimentos e ataques do jogador. Este tipo de treino, embora não sendo combate real, é o que possibilita um treino em que o foco é pancadas que varram “algo”, pois assim há um objetivo e há realmente uma ação-reação da parte de todos os envolvidos, objetivo este que permite manter viva este tipo de prática, cujo objectivo não é especificamente um individuo vencer outros dez mas sim conseguir gerir durante o maior tempo possível os seus vários adversários, finalizando algum deles apenas na ocorrência de uma oportunidade, mas que não o desvie do objetivo principal de se manter intocado por todos os outros.

O varapau em comprimento

The walking staff in length (read in English)

O varapau português

O varapau como arma, é visto em várias artes marciais por todo o mundo, no entanto, apesar de ser das mais simples armas, o seu comprimento pode facilmente afectar a forma como este pode ser utilizado em combate.

O varapau utilizado no jogo do pau português, é uma “ferramenta” comum no meio rural, para conduzir o gado, caminhar etc… O seu tamanho surge naturalmente, pois se fosse muito mais longo, já não daria tanto jeito para caminhar ou manobrar, e se fosse muito mais curto, funcionaria como uma bengala, que poderia ajudar na caminhada, mas não serviria de apoio, como um cajado serve a um pastor.

Noutros contextos, podemos ver varas mais longas, como por exemplo, os campinos do Ribatejo, no entanto, eles utilizam esta vara para conduzir o gado a cavalo, por isso, tem necessariamente que ser mais longa.

Campinos

O cajado, ou varapau do jogo do pau, anteriormente a qualquer padronização, teria um comprimento que certamente variava, mas andava sempre dentro de certos limites, geralmente bem mais longo do que uma bengala, e nunca muito mais alto do que um homem.

(Exemplos do varapau, fotos individuais e em feira)

Não era portanto uma arma. Este comprimento do varapau não foi então escolhido por ser excelente para o combate, surgiu como já disse, naturalmente, mas apesar da sua utilização prática em várias funções, tem também características que o tornam ideal para o combate no contexto em que o jogo do pau se desenvolveu.

Armas alternativas

O jogo do pau teve grande relevância numa altura em que não existiriam muitas outras alternativas em termos de meios de defesa. O policiamento era reduzido, sendo que o homem necessitava de se defender a si próprio, e isto acontecia em meios rurais, onde os campos eram mais abertos, pois numa cidade e em ruas apertadas, esta arma teria uma aplicação mais reduzida.

Outras alternativas de defesa não estavam disponíveis ao homem comum, como as armas de fogo. Sendo as pistolas, não muito vistas em Portugal numa altura em que o revolver na América teria mais predominância, aqui esse seria de mais difícil acesso. Só mais tarde e nunca em tão larga escala, veio a substituir o varapau como arma de defesa.

As armas de fogo de cano longo, sendo mais comuns e em muitos casos superiores ao varapau, eram no entanto, de transporte difícil, e não teriam grande utilidade para uma utilização diária.

As espadas, sendo uma tecnologia milenar, não estariam também ao alcance do trabalhador rural, restando-lhe apenas o simples varapau.

Em complemento ao varapau

Era então, o varapau, quase o único meio de defesa do homem. Uma outra arma comum, disfarçada de ferramenta do dia à dia, seria a navalha, esta também com outras utilidades além do combate, não sendo de um comprimento muito longo. Era porém algo a ter em consideração, e que, de certa forma, fazia com que o varapau fosse ainda mais essencial como arma principal, pois o varapau era a única forma de evitar, com o seu comprimento, uma luta de navalhas a curta distância que seria muito mais difícil de controlar e bem mais letal. Tendo em consideração que numa luta de navalhas, é mais provável os dois combatentes saírem gravemente feridos e é também mais difícil um deles fugir de uma luta a tão curta distância mesmo que surja a oportunidade ou vontade. E sendo um dos objectivos da defesa pessoal, especialmente em caso de inferioridade numérica, a possibilidade de fugir, o varapau, de certa forma, mantinha essa possibilidade muito mais em aberto do que numa luta de navalhas.

Sendo assim, temos como uma das principais funções do varapau o evitar o combate corpo a corpo que geralmente resultaria em luta com navalhas. Por esse motivo, no jogo do pau, vemos um combate geralmente realizado a longa distância mas que tem sempre presente a possibilidade de um dos combatentes entrar em corpo a corpo, e a capacidade de evitar essa situação é também parte do treino e era uma parte essencial deste quando o jogo do pau era utilizado como forma de defesa.

Os limites do comprimento

Isto afecta o comprimento da vara, pois, quanto maior for a vara, mais fácil é manter o adversário longe e evitar o corpo a corpo, sendo preferencial ter um varapau do que uma bengala, que apesar de também permitir o mesmo resultado, tem menos margem de erro.

A vara a ser utilizada em rotação continua com a rotação do próprio corpo.

Sendo um varapau curto mais fácil de manejar, pela sua leveza e assim, poder facilitar o bater no adversário, não era no entanto o escolhido pois o alcance extra da vara longa, de cerca da altura de um homem, dava realmente uma certa vantagem. Porém, a partir de um certo comprimento a vara torna-se tão longa que já não é possível a manusear em rotação com tanta facilidade. Este limite não é causado tanto pela força muscular da pessoa, embora isso também possa pesar, mas sim, pela correcta utilização do peso do corpo no auxilio da rotação, e com varas muito maiores, essa rotação torna-se mais lenta, pois ao utilizarmos uma vara mais longa, o nosso corpo mantém-se igual, e perde-se assim, a eficácia no ataque em rotação, sendo esta proporção mais uma limitação natural do comprimento do varapau.

– Frederico Martins

Deslocamento em jogo / Body displacement in freeplay

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Sequencia de 6 defesas e contra ataques / Sequence of 6 parry and  counters

PT:
Como podemos ver na imagem, o descolamento do corpo em jogo livre deve ser constante, havendo sempre um ajuste da distancia na defesa, sendo que o ataque é sempre realizado para bater. O jogador que ataca, avança para chegar ao alvo, mas o que defende recua, mantendo-se seguro. Esta não é uma regra absoluta, pois quem defende pode conseguir defender no lugar ou mesmo a avançar, mas este deslocamento base, permite uma maior segurança, e é o mais comummente utilizado.

Quando se vê o video normalmente, pode parecer que as varas so tocam uma na outra e que se esta a atacar para o ar. Isso seria verdade se não houvesse deslocamento, mas neste caso podemos ver que os ataques são feitos para o corpo, e é o constante deslocamento que permite uma defesa segura.

Note que deslocamento do corpo não é apenas deslocamento do pé, é possível mover o pé sem quase mexer o corpo, mas o que se quer aqui é deslocar tanto o corpo como o pé.

EN:
As we can see in the image, the movement of the body is constant in traditional freeplay, there is always an adjustment by the defender, and the attack is done to reach him. The fencer that attacks moves forward to reach the target, but the defender retreats back, keeping a safe distance. This is not a “rule of the game”, the defender could stay in place or even move forward when parrying if he had the skill for that, but this displacement allows more safety and is the most commonly used.

When the video is played normally it might look like the fencers are striking out of range and only hitting to the staffs. That would be true if they didn’t move their body and just stayed in place hitting out of distance, but this is not the case, since the strikes are made to the target and the body displacement of the defender is what creates the safe distance.

Note that body displacement is not the same as just footwork, it is possible to move the feet without barely moving the body, that is not what we see here, what is done in jogo do pau is the displacement of the body as much as the feet.

[youtube http://www.youtube.com/watch?v=ukTeaIHe1kQ?feature=oembed&w=500&h=281]

Uma demonstração técnica de jogo do pau.
Nesta demonstração, além de demonstrar o jogo do pau em combate livre como ele é praticado tradicionalmente, há também uma preocupação em demonstrar as técnicas individualmente, para dar uma ideia ao público da complexidade da arte, e da forma como, em jogo livre, cada pancada e contra ataque é estudado.

Neste vídeo temos 3 fases da demonstração:

  • Na primeira fase temos a demonstração da pancada com o seu alcance, seguido da pancada e contra ataque;
  • Na segunda fase (aos 3m35s) temos uma demonstração de jogo livre, mas em forma extremamente lenta e com as pancadas a serem paradas;
  • Na terceira fase (aos 4m20s) inicia-se o jogo livre.

Ficam neste 3 últimos posts referidos 3 diferentes formatos de apresentação do jogo do pau, sendo que apesar de terem públicos ou objetivos ligeiramente diferentes, os 3 apresentam jogo livre.

[youtube http://www.youtube.com/watch?v=6Cghnc7gfLg?feature=oembed&w=500&h=374]

­Demonstração tradicional de jogo livre.
Numa demonstração tradicional, não há a preocupação de recriar um momento histórico (a não ser talvez pela utilização de roupa mais tradicional), há apenas a intenção de demonstrar a arte de combate como ela é praticada tradicionalmente.

Como as armas utilizadas são reais, de madeira sólida, e as pancadas são, como podemos ver no vídeo, bastante fortes e que claramente causariam graves danos caso caíssem no corpo de algum dos jogadores, como pode funcionar então esta demonstração de outra forma que não seja de uma coreografia bastante bem ensaiada para não haverem acidentes?

Ora se fosse uma coreográfica, com os movimentos pré definidos e ensaiados, poderiam até estar a ser utilizadas as técnicas do jogo do pau tradicional, mas não ser jogo livre. O que faz com que seja jogo livre, e jogo do pau como é praticado tradicionalmente, é o facto de que os movimentos não são planeados, as pancadas são fortes e certeiras, para bater e não para o ar.

Mas se assim é, como é possível os praticantes, na demonstração, não se magoarem gravemente na maior parte das demonstrações?

É possível, porque, apesar de as pancadas não serem controladas, serem feitas para bater e direcionadas para o corpo, não se trata de um combate real, em que os nervos estão ao rubro, mas sim de um treino/demonstração, em que os jogadores testam as suas capacidades. Este treino apresenta alguns riscos, sem duvida, pois se falha uma defesa ou há uma medição errada de distâncias, uma pancada pode cair num jogador. Pois mesmo que o atacante se aperceba da falha do jogador que defende, um ataque é muito dificilmente parado, especialmente se já for na sua fase final.

Mas então não há tentativa de enganar o adversário como num combate real? As pancadas são todas óbvias e claras? é que neste vídeo os jogadores parecem estar-se a medir um ao outro, e por vezes parece que estão se a estudar, a ver quem ataca primeiro e se se conseguem enganar um ao outro, isso é teatro?

Não é teatro, é até possível fazer alguns enganos e fintas. Temos que ter em consideração que os jogadores se conhecem e sabem a capacidade uns dos outros, se fosse um mestre contra um iniciado, o mestre poderia bater no iniciado na primeira pancada, mas num treino não o faz, ataca mais devagar, de forma a que seja possível ao iniciado defender, aprender e ir melhorando,  com ataques sinceros e claros para não haver acidentes. No entanto, conforme a mestria dos jogadores vai subindo, num combate entre praticantes de alto nível, não aumenta só a velocidade das pancadas, mas também passam a ser possíveis mais fintas e enganos, e uma tensão e intensidade superior, mais características de um combate real. O risco aumenta, mas como os jogadores se conhecem e tem confiança nas suas capacidades, este tipo de treino e demonstração, é possível de ser feito em relativa segurança, não sendo combate real, já se aproxima mais um pouco. Sendo que a certa altura, com jogadores de alto nível a diferença está em levarem as suas capacidades ao extremo, para, em combate real, realmente baterem no adversário.

Uma demonstração entre iniciados, será bastante mais aborrecida, lenta e previsível do que uma entre mestres ou praticantes de alto nível, por isso temos várias descrições de demonstrações em que certos indivíduos eram aplaudidos de pé pelo seu bravo combate, mesmo sem nenhum dos dois ter levado alguma pancada, o elevado nível de ambos os jogadores é óbvio na sua demonstração, mesmo para espetadores não praticantes.

Mas nas demonstrações de jogo do pau, os jogadores ficam a distribuir pancadas durante muito tempo, mais de 10 defesas e contra ataques por vezes, quase parece como num filme, um combate real não seria provavelmente vais rápido, uma ou duas pancadas e um dos lutadores estaria no chão?

Um combate real poderia sim acabar muito rapidamente, até logo na primeira pancada, no entanto, nestas demonstrações como já referi, a intensidade é reduzida, a um ponto em que ambos os jogadores possam treinar em segurança, em que sintam confiança nas suas defesas, por isso pode haver mais trocas de pancadas.

Mas se o jogo do pau é tão eficaz, não deveria haver um golpe que acabasse com o combate?

Não existem golpes infalíveis, pois todos os ataques tem uma defesa, um jogador vence quando encontra um desequilibro no adversário, ou por ter uma técnica superior, ou seja, mais bem treinada, ou simplesmente o adversário cometa um erro. Mas se ambos não cometerem erros e combaterem de forma ideal, nenhum será atingido. Porém, ninguém é perfeito, pelo quem, no calor do combate, a uma velocidade limite, todos podem errar, e só com treino se pode consolidar a técnica para que tal aconteça menos vezes, e se conseguir até criar aberturas e oportunidades de atacar o adversário.

Uma coisa que parece é que as pancadas não são realmente para bater no corpo, pois os jogadores estão muito longe um do outro, não é isso também que permite este treino em segurança?

A estas duas questões, “As pancadas são para o corpo?” e “A distância permite segurança?” a resposta é sim, mas vamos ver mais de perto o que quero dizer com isto. Embora por vezes pareça que as pancadas não chegariam ao outro jogador, a verdade é que há sempre deslocamento, por isso, quando o individuo que ataca avança, o que defende recua, e está sempre presente a gestão da distância pelas duas partes, não estando nunca os dois parados, a uma distancia segura a bater apenas com os paus no ar. Este recuar permite manter a distancia e, respondendo à segunda questão, manter-se seguro. Porém, este distanciamento, não é combater atirando ataques para o ar for a do alcance, o que estaria errado, mas sim, atacando para o corpo, sendo da iniciativa de quem está a ser atacado, de recuar e manter a distância, isto faz parte da defesa, sendo o ataque para o corpo, meramente recuar, é uma defesa eficaz, mesmo que não haja embate de varas.
Nas palavras de Frederico Hopffer:
“Dar todo o comprimento às pancadas é indispensável a fim de  que o discípulo não fique iludido, o que pouca  importância teria quando joga com o mestre, porque esse encurta, desvia, retarda, etc., as pancadas, mas quando jogar com qualquer condiscípulo ou adversário, não lhe será  fácil encontrar  quem lhe faça o mesmo.” – Frederico Hopffer, “Duas palavras sobre o jogo do pau” 1924

Ele e Eles a Varapau


(Ilustração de Paulo J. Mendes – http://postalguarelas.blogspot.pt)

Ele passou pelo grupo, tentando agir naturalmente apesar de saber que por aqueles caminhos não era bem recebido. Estava sozinho e eles fulminavam-no com os olhos. Estavam encostados a um muro, e ele que tinha que passar por aquele caminho, sabia-se em desvantagem. Todos eles eram bravos lutadores, e por mais vezes que ele tivesse saído ileso de uma feira em alvoroço, ali, naquele espaço limitado, sem ser grande corredor, não tinha nem solução nem escapatória. Se os provocasse ou se eles se decidissem vingar, ele ficaria com muita sorte, o próximo mês sem conseguir trabalhar, coisa que não dava jeito nenhum. Isto se não ficasse o seu corpo perdido naquele mato.

Mas do que se poderiam eles vingar? Ora, das vezes que ele lhes quebrou os ossos, não havia um daqueles 8 rapazes (e alguns já não tão novos) que não tivesse pelo menos um ossito quebrado por ele em posteriores andanças. De aldeias diferentes, os rapazes de uma, nunca olhavam de bom grado para os de outra, e em várias feiras, ao longo dos últimos anos, ele teve oportunidade de se defrontar com todos eles, em alturas diferentes, umas vezes com um par deles, outras vezes com quatro ou cinco de uma vez, ou mais. Muitas vezes não estava sozinho também, mas a verdade é que destes nove rapazes, ele e o grupo, ele nunca levou deles, mas eles sempre levaram dele.

Poderíamos estar a falar de um grande mestre do varapau, daqueles homens que ninguém lhes toca, de que todos tem medo de se aproximar, e cuidado com o que dizem para não o fazer puxar do varapau, mas não era o caso, ele muitas vezes tinha ficado de cama, muita pancada tinha também levado, e nem era tão pouco o melhor da sua própria aldeia. Eles todos juntos, facilmente conseguiam-no deixar estendido ali na estrada, se calhar até só 2 ou 3 deles.

Quando ele já ia a passar, uns bons passos à frente do grupo, o mais alto, do meio, grita – ouve lá – Ele vira-se e olha-o no olhos. O do meio continua: – Na próxima semana há feira, ai é que vais ver como é! – Ele, aliviado, sorri e diz – Veremos – e continua o caminho.

Frederico Martins

[youtube http://www.youtube.com/watch?v=7h1CjwRKW9g?feature=oembed&w=500&h=374]

O jogo do Norte.

Em Lisboa, dá-se a designação de jogo do norte, ao combate contra vários adversários.

Na primeira parte deste video, o CCRJC dá-nos uma excelente demonstração de várias dessas situações de combate, praticadas não em situação real que seria impossível  sem acidentes, mas sob pressão, dada pelos vários adversários que seguram a vara como alvo e que pressionam, aproximando-se e afastando-se.

Assim, criam-se pressões reais sobre quem pratica/está no meio, que se vê forçado a reagir ao ambiente hostil e em constante mudança que o rodeia.

O lutador em inferioridade numérica, não segue uma formula fixa, utiliza sim uma série de ataques simples, mas rápidos e fortes, sob os quais tem um grande domínio,   para manter os adversários à distância. Pois os mais bravos teriam dificuldade em se aproximar dele, sabendo que teriam que se pôr de baixo destes golpes.

Estes dois elementos são essenciais para esta situação de combate, sem a capacidade de reagir dinamicamente, em todas as direcções, às pressões que o rodeiam, o lutador, por mais forte que seja o seu ataque, seria eventualmente apanhado de surpresa num ângulo a que não tivesse atento. Por outro lado, se o seu ataque fosse fraco, acabaria por ser “esmagado” pelos seus adversários  que  não sentiriam necessidade de se afastar.

Para se adquirir estes movimentos, pode e deve-se praticar de forma mais sintetizada  e sequênciada,  segundo uma ordem definida, sem todo o caos que parece haver nesta demonstração, porém, este tipo de prática mais dinâmica, foi o que permitiu manter o jogo do pau vivo como sistema de combate, não preservando apenas os movimentos, mas também a atitude e concentração necessárias a uma situação de combate tão complicada como é a de se estar em inferioridade numérica, desenvolvendo assim, nos praticantes, competências e aptidões que de outra forma não seriam desenvolvidos nem preservados.