Um mês antes do dia fixado para o casamento da Chica, houve na aldeia uma festa à Senhora da Luz.

No terreiro em frente da igreja, raparigas e rapazes dançavam e cantavam alegremente.

À tarde um rapaz propôs o jogo do pau para se divertirem, e convidou o Manuel para seu adversário. O lavrador não ignorava a causa daquele convite, Sabia perfeitamente que o António era seu rival, e por isso acedeu.

Jogaram, o primeiro manejando admiravelmente a arma sorria do entusiasmo quase furioso com que António o atacava.

Este, num momento em que o Manuel olhou para a noiva, seguiu-lhe o olhar e estremeceu. Levantou mais o pau e fazendo-o girar em roda da cabeça, deixou-o cair com força na fronte do adversário.

Aturdido pela pancada, Manuel cambaleou e caiu de bruços sem soltar um grito. Desmaiara. Felizmente a ferida era pequena e passadas algumas semanas o lavrador restabeleceu-se.

Madalena Martins de Carvalho em “A Fatalidade” ~ 1891

As arrecadas

asarrecadas

No outro dia, manhãzinha cedo, havia de o Neto marchar para a feira, com os dois novilhos à soga.

Os animais eram galhardos, escorreitos e sãos, benzesse-os Deus; de dez moedas para riba com certeza davam. E o Neto’ botava já contas à vida no destino daquele dinheiro: — três para a décima, quatro para emprestar a juros de um alqueire cada, e as restantes, com essas compraria as arrecadas da filha.

Ai! as arrecadas! Até que enfim, a Adelaide ia ter umas arrecadas; e só de lhe lembrar o alegrão que a cachopa sentiria ao ver as ricas argolas de ouro,  enramalhetadas e lindas, já todo se consolava o pai.

— Tu como as queres, cachopa?

De qualquer geito ela as queria; como fosse da vontade de senhor pai…

— Grandes, hein ?

— Sim, ele sempre será melhor.

Não mostrava muito empenho — sempre seria melhor… Mas os seus belos olhos luziam já, como se estivessem vendo ali bem perto, ao alcance da mão, os enormes brincos, de um lavor complicado, com florinhas em relevo, e sua pedra de cor viva, a dar-lhes graça.

O pai desejava, porém, informações miúdas e precisas; não fosse ele, na sua ignorância, comprar coisa fora dos termos.

— Pintalgadas, hein, que te parece?

Parecia-lhe que sim. Uns “não me esqueças” pequeninos em toda a volta, ficariam a calhar. E numa palavra — o senhor pai que visse bem se lhas podia, arranjar iguais ás da Teresa. Lembrava-se ?

Sim, tinha uma lembrança, não havia duvida.

— Pois, está dito, como as da Teresa: grandes, bem trabalhadas e com florzinhas. Dito.

E festejando-lhe a bonita cara com a mão calosa e larga, deu as boas noites.

Caminho do quarto, fez ideia da impaciência em que o esperaria a filha no dia seguinte, das vezes sem conta que ela iria à janela a ver quando o lobrigava na volta da estrada, ao longe, entre os dois grandes pinheiros mansos.

— Presunçosas, presunçosas! — dizia baixo — Que ele também se a presunção fosse tinha…

E pegou a despir-se para se meter na cama. Mas a voz da filha ouviu-se fora.

— Senhor pai, olhe…

— O que é rapariga?

— Se me comprasse também uma caixinha prás arrecadas…

— Compra-se a caixinha, fica descansada.

-Olhe.

— Hein.

— Se eu fosse consigo ?…

— Hom’essa! E quem há de tratar da obrigação?

— Falava a alguém.

— Tens medo que me roubem no caminho?

E largou a rir.

— Cá de mim, não. Mas…

— Nada, fica, fica. Aquilo não é romaria; não há lá danças. Negócios, tudo negócios. Mulheres não andam pelas feiras.

Ela suspirou, tinha grande vontade de ir. Mas, enfim…

— Boa noite, disse desconsolada.

— Boa noite.

* * *

Mal o dia rompeu, logo o Neto desceu à corte, a aparelhar os novilhos. Passou-lhes a soga nos chifres, tirou-lhes com cuidado a poeira do pelo;e depois de ir buscar atrás da porta a aguilhada de marmeleiro, passou os dedos no ferrão a ver se estava agudo, botou a jaqueta ao ombro e partiu, acenando aos novilhos que o seguiram aos saltos.

A feira ficava longe, num soito largo, onde castanheiros velhos e enramalhados punham na relva fresca enormes manchas de sombra.

Havia um grande chocalhar de campainhas: os vendedores passeavam os animais, encarecendo-os e gabando-lhes a boa andadura, o ensino apurado, a submissão e a valentia. Discutiam-se defeitos, falava-se com ciência em névoas dos olhos, nódoas nos dentes, – peito aguado, má boca ou mau trabalho.

Sobre pedras, alguns vendedores tilintavam uma a uma, punhados de libras, cuidadosamente, verificando se eram das boas. Morgados e ricaços, de esporas e chibata, botas altas de montar, passavam devagar, cumprimentando popularmente em grandes mãosadas, apreçando os bois, com grande ar de entendidos. Um abade — troquilha, de chapéu largo, jaquetão comprido e cigarro na boca, tentava manhosamente, num contracto retórico, impingir aos fregueses uma égua escanzelada e velha.

Palrava-se muito: em grupos havia mesmo ralhos, palavras feias, princípios de bordoada grossa.Junto ás pipas, decilitrava-se, em saúdes, por grandes malgas vidradas.

O Neto chegou tarde; mas em volta dos novilhos armou-se logo uma roda de compradores. Alguns arrebitavam-lhes o beiço para ver a idade, miravam-lhes bem as patas, comentando a perfeição dos cascos. O que ali estava à vista de todos (o Neto o afirmava) era trigo sem joio: animais de uma cana só.

— Quanto quer p’los bichos, ó tio ?

Dez moedas ; era o preço.

— Puxadote, hein? puxadote.

E remiravam ainda, separadamente e miudamente o corpo de cada animal, passando-lhe a mão por todo o comprimento do lombo, ameigando-o com pancadinhas doces. A junta despertava interesse.

— Diga lá a ultima palavra, a ultima.

O Neto declarou que a ultima palavra era — dez moedas. Nem mais nem ontem. Nunca fora homem de regatear; nada, isso era bom para ciganos.

— Nove moedas, toma lá dá cá; escusa de ir mais adiante…

E faziam já menção de rapar do bolso as nove moedas, e contar-lhas ali num pronto.

— Por menos de dez ninguém mos leva.- É escusado.

— Nove e meia.

— Nada.

Mas pessoas, em volta, metiam-se no contraco. Verdade, verdade, seu Neto. Nove moedas e meia era um bom preço ; não senhor, era um bonito preço.

Altercou-se; alguns iam-no agarrar, arrastavam-no fora do grupo, falavam-lhe devagarinho ao ouvido. Que diabo, homem, a oferta não era de desprezar. Visse bem que eram nove moedas e meia — dez libras e seis tostões ! Era um alto negocio, um negociarrão!

Outros segredavam-lhe amigavelmente nue não cedesse; o outro chegaria ás dez. Estava encantado com os animais.

Mas um vélhote chegou. Pediram-lhe o parecer.

— Dez moedas é de mais, você que diz ? perguntou o comprador. — Eu até ás nove e meia ainda dou.

O velhote adquiriu maneiras de juiz, prestes a julgar uma causa celebre. Pediu fogo a um deles, acendeu pachorrentamente o cigarro.

— Então você quer dez moedas ?

O Neto acenou com a cabeça.

— Você (para outro) dá as nove e meia?

— Saltadinhas.

— Pois ai vai o meu conselho; vende-se os bois p’las dez menos um quarto, e o outro quarto vai-se beber de vinho, em súcia.

— Aprovado.

— Dito.

Contou-se ali o dinheiro, e foi-se beber o quarto em súcia.

Depois o Neto partiu; tinha umas coisas a fazer; tinha que tratar dos negócios, deixou ainda os amigos discutindo de malga na mão, em volta de uma pipa.

Abalou para o lado dos ourives; correu-os todos, de cabo a rabo, analisando bem os brincos pendurados em cartões verdes à volta das barrancas, ou metidos em caixinhas, por cima dos mostradores.

Custava-lhe o decidir-se; por fim, um tanto namorado por dois ricos argolões, fortes e caprichosamente floreados, perguntou a medo o preço.

Veio avia-lo a mulher do ourives, uma senhora alta, gorda e loira, de mãos finas e brancas, bonitos modos, falas muito doces; a sua voz tinha um tom estrangeiro, carregava muito nos rrs.

— Os lindos brrincos custam ao sinhorre trreze mil réis.

— Não faz um abatimentozinho ? aventou o Neto, vagamente.

— Não sinhorre, não pode serre menos.

E convencia-o com argumentos brandos.

— Eu pode venderre outrros mais barratos; mas estes são bons. Muito na moda; muito bons.

Então, tirou da algibeira a bolsa e pôs-se a contar o dinheiro; queria também uma caixinha, daria mais a mais alguma coisa se preciso fosse.

Ela arranjou-lhe uma caixa preta de forma triangular, meteu-lhe dentro as arrecadadas, cobriu-as preciosamente com frouxel branco.

— Pronto.

E com um gesto gracioso apresentou-lhe amavelmente a caixinha; ele pagou sorrindo. Pediu ainda um papel para embrulhar, e sepultou com cuidado os brincos na algibeira de dentro.

Caiam as trindades quando largou da feira. Ia-se gente embora, puxando os bois à sóga; apenas alguns feirantes meio bêbados pairavam ainda ao redor das pipas.

Estrada fora o Neto de novo pensou na filha. Que alegrão! Botava as mãos ao peito, palpava a saliência da caixa. Era verdade, levava ali a prenda tão cobiçada, há tanto tempo prometida… E adivinhava-a na janela. espiando a estrada, apesar da escuridão da noite, julgando a todo passo vê-lo chegar, subir a escada, atirar-lhe ao regaço as belas arrecadas doiro. A moça por certo ficava doida. Que alegrão, que alegrão!

E alargava o passo.

A noite era negra e silenciosa: raras estrelas tremiam apenas escassamente no azul enevoado do céu; a espaços o piar melancólico dum mocho varava o ar; o vento soprava surdo por dentro dos pinheiros.

O Neto, de mãos nos bolsos da jaleca, varapau debaixo do braço, caminhava.

Perto havia uma encruzilhada de má fama. Diabo! Um pressentimento lúgubre, quasi o fez parar; mas tentou recuperar sangue frio. Ora bolas, que crença medrosa! Pois não queriam ver o homem com receio de passar a encruzilhada? Tinha graça!

E estugou mais o passo, ansioso e ofegante.

Mesmo no sitio em que as estradas se cruzavam, três homenzarrões, de cacete erguido, num pronto o rodearam.

— O’ amigo, poise o que leva!

Ficou sem pinta de sangue. Logo três, Senhor, logo três! Quis fingir-se um pobre diabo, sem dinheiro para lhes poisar, que o deixassem seguir o seu caminho, que o deixassem.

— Vá de cantiga, berram-lhe, pois o que leva!

Pois ele havia de entregar assim, imbecilmente, passivamente, o preço dos seu bois, as arrecadas da sua filhinha?…

— Eu cá de mim não levo nada comigo. . .

— Isso é que vamos ver.

E um dos salteadores adiantou-se, ia deitar-lhe sofregamente a mão ás algibeiras. O Neto recuou dum salto e despediu-lhe rija pancada à nuca; mas um companheiro aparou o golpe; com destreza, e então os três deram de malhar no pobre homem, brutalmente, em cacetadas que o, mediam de ilharga a ilharga, desvairados, furiosos, até que mais certeiro golpe, apanhando-o pela cabeça, deu com ele em terra, exangue, sem sentidos…

Foi um carreiro do lugar, vindo de Coimbra nessa noite, quem o achou na valeta, imóvel, mudo, numa poça de sangue, sem dar cor de si. Carregou-o jeitosamente até ao carro; ali o depôs sobre a palha, que havia crescido da ração dos, bois.

Eram altas horas quando chegaram ao lugar; a Adelaide estava numa aflição, com tal demora. E apenas lhe disseram do ocorrido, largou a gritar, desfazendo-se toda em lágrimas, juntando as mãos num desespero, soluçante, doida de dor.

— Bem me adivinhava o coração, bem m’o adivinhava. Ai meu rico paizinho,que m’o mataram. Galgou as escadas, e ela mesma, com a ajude do carreiro, trouxe o Neto pelo corredor, fora até a cama.

Vieram vizinhos, numa balburdia, solícitos, oferecendo o seu préstimo, todos empenhados em dar o seu auxilio naquela desgraça. Um deles foi chamar o medico.

Afinal, o homem estava apenas desmaiado. Tinha a cabeça ferida em duas partes, nódoas negras em todo o corpo, a cara toda ensanguentada, mas havia de salvar-se. E aplicaram só de pronto mésinhas.

A Adelaide ficou a rezar fervorosamente à beira do leito, com os Olhos no pai. Pela volta da madrugada é que ele se voltou debaixo da roupa.

— Ai, és tu, cachopa?

— Senhor pai! E beijou-lhe as mãos.

— Moeram-me de pancada… Por pouco me não mataram.. Roubaram-me…

Teve um suspiro fundo, que o abalou todo e fez torcer de dor, fincando os dentes nos beiços.

— Lá se foi o dinheiro dos novilhos…

E como reparasse que ela soluçava muito:

— Não chores, não; pra que? Perderam-se os novilhos? As vacas tornam a parir.

Suspirou outra vez. E depois, mais dolorosamente:

— O pior foi roubarem-me as arrecadas!

Armando Erse de Figueiredo (João Luso)
em “A Novela Semanal” 16 de Maio de 1921

 

Ele e Eles a Varapau


(Ilustração de Paulo J. Mendes – http://postalguarelas.blogspot.pt)

Ele passou pelo grupo, tentando agir naturalmente apesar de saber que por aqueles caminhos não era bem recebido. Estava sozinho e eles fulminavam-no com os olhos. Estavam encostados a um muro, e ele que tinha que passar por aquele caminho, sabia-se em desvantagem. Todos eles eram bravos lutadores, e por mais vezes que ele tivesse saído ileso de uma feira em alvoroço, ali, naquele espaço limitado, sem ser grande corredor, não tinha nem solução nem escapatória. Se os provocasse ou se eles se decidissem vingar, ele ficaria com muita sorte, o próximo mês sem conseguir trabalhar, coisa que não dava jeito nenhum. Isto se não ficasse o seu corpo perdido naquele mato.

Mas do que se poderiam eles vingar? Ora, das vezes que ele lhes quebrou os ossos, não havia um daqueles 8 rapazes (e alguns já não tão novos) que não tivesse pelo menos um ossito quebrado por ele em posteriores andanças. De aldeias diferentes, os rapazes de uma, nunca olhavam de bom grado para os de outra, e em várias feiras, ao longo dos últimos anos, ele teve oportunidade de se defrontar com todos eles, em alturas diferentes, umas vezes com um par deles, outras vezes com quatro ou cinco de uma vez, ou mais. Muitas vezes não estava sozinho também, mas a verdade é que destes nove rapazes, ele e o grupo, ele nunca levou deles, mas eles sempre levaram dele.

Poderíamos estar a falar de um grande mestre do varapau, daqueles homens que ninguém lhes toca, de que todos tem medo de se aproximar, e cuidado com o que dizem para não o fazer puxar do varapau, mas não era o caso, ele muitas vezes tinha ficado de cama, muita pancada tinha também levado, e nem era tão pouco o melhor da sua própria aldeia. Eles todos juntos, facilmente conseguiam-no deixar estendido ali na estrada, se calhar até só 2 ou 3 deles.

Quando ele já ia a passar, uns bons passos à frente do grupo, o mais alto, do meio, grita – ouve lá – Ele vira-se e olha-o no olhos. O do meio continua: – Na próxima semana há feira, ai é que vais ver como é! – Ele, aliviado, sorri e diz – Veremos – e continua o caminho.

Frederico Martins

Maio moço – Miguel Torga

O infeliz menino órfão que, para defender o rebanho do seu malvado tutor, matou o lobo feroz, transformando-se em herói das aldeias.

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“(…)Os nevões, o nevoeiro e o codo são a bem-aventurança dos lobos. Num desses dias, em que só havia brancura de morte por todos os lados, de repente, surgido não sabia de onde, o Gonçalo deu com os olhos num a abocar-lhe uma cordeira.

O cão de guarda ficara-se na povoação, atrás duma cadela na cainça. Alentado e de poucas festas, era ele que dava paz e segurança ao rebanho, numa vigilância guerreira, simbolicamente representada na coleira eriçada de pregos. Por isso, sem aquela protecção, o mesmo terror que tresmalhou as reses, siderou o pastor. Garanho de frio e de medo, o pobre coitado mal podia segurar no lódão. Bambeavam-lhe as pernas, e o coiro da cabeça queria despegar-se-lhe dos ossos. Mas, subitamente, por mistérios insondáveis da natureza humana, ergueu-se-lhe dentro do corpo acobardado uma onda de coragem. E arremeteu com tal fúria sobre o ladrão, que parecia uma fera a avançar sobre a outra.

– Grande como!  – gritou, a dar solidariedade aos berros da ovelha agadanhada, enquanto levantava o varapau.

Filado à cernelha da churra, o salteador negava-se a largar a bocada. Ágil e teimoso, tentava arrastar a presa e furtar-se aos golpes. O gosto doce do sangue exacerbava-lhe a fome e assanhava-lhe a teimosia. Tanto montava as bordoadas choverem, como nada.- Cabrão! Cada vez mais desesperado, o cacete ia e vinha, numa raiva animada de minuto a minuto pela insólita duração da violência.

– Larápio dos infernos! Impávidos, os montes, numa neutralidade polar, assistiam à 

luta. Nem os comoviam os balidos lancinantes da borrega, nem a angústia do garoto a lutar à sobreposse.

– Não a levas, nem que te danes!

O ímpeto inicial, fruto da espontânea reacção a qualquer desafio que nos é feito, dera lugar a uma serena e voluntariosa consciência protectora. Rei dos animais pela razão, o pastor perdera o sentido do perigo e o terror dele. Agora era um inexorável fiscal da ordem a impedir desmandos.

– Excomungado! Num salto imprevisto, o inimigo arredara-se de uma estadulhada que parecia certeira, e o cajado batera em falso num fragão.

– E esta?

Desiludido com a perícia da emenda, que foi rápida e lhe assentou em cheio no lombo do lobo hesitou. Mas quando se resignou a abandonar a vítima e se dispôs a fugir, o Gonçalo cortou-lhe a retirada.

– Tem paciência: agora ficas aqui! Disse, e redobrou a força das mocadas.- Não pões os queixos em mais nenhuma! Derreado, o lobo arreganhava os dentes inutilmente. Com mais três ou quatro amacios, estava liquidado, com a espinha quebrada, caído aos pés do vencedor.

Calhou ser dia de feira em S. Lourenço, e o Nicolau almocreve, que regressava a casa, dar de chofre com aquele espectáculo: o catraio, pálido de emoção e possuído ainda da fúria vingadora, a migar os ossos do agressor; este, esquadrilhado, a babar a neve do sangue da agonia.

– Com trinta milheiros de diabos! Tu onde arranjaste tanta coragem, rapaz?!

O pequeno limpou o ranho do nariz.

– Filho de quem o pariu! Olhe o que ele fez!

Sem vaidade, singelamente, mostrava a mola que o empurrara – a ovelha morta. O Nicolau, e logo a seguir Dornelo, é que não viam no feito senão a valentia na sua pureza original. Quantos e quantos, em semelhante situação, não teriam dado às de vila-diogo!

E a vida do Gonçalo transfigurou-se. Relatada a façanha, e provada com a presença da bicheza, que percorreu o povoado em procissão, um outro sol iluminou os seus gestos, as suas palavras, a sua solidão. Todos passaram a dar-lhe a dignidade que lhe negavam até ali. Os grandes queriam protegê-lo; os pequenos imitá-lo. A mestra protestou que era uma barbaridade deixá-lo analfabeto; o abade declarou que Ia ensinar-lhe o catecismo; a ração aparecia-lhe dobrada no bornal.(…)”

“Os contos da Montanha – Maio moço” Miguel Torga (1941)
http://www.wook.pt/ficha/contos-da-montanha/a/id/3469019 

Espadão contra 5 paus

Romance: “O Génio do Mal”  Volumes 3 – 4

Arnaldo Gama – 1857

— Pois então cá por mim não tenho mêdo — disse o visconde — mande preparar para partirmos.

— Umph !— rosnou Manuel Gomes, e desceu. Dez minutos depois pozeram-se a caminho. Até ao largo de Souto Redondo, Manuel Gomes, que se pozera de batedor na frente da carruagem, não viu nada que o inquietasse ; ao entrar porém no caminho que d’ahi leva a S. João da Madeira sentiu um silvo agudissimo, viu chamejar de repente o espaço, ouviu a descarga de cinco tiros, e logo o silvo das balas que passaram junto d’elle, e outras que bateram na sege.

O cavallo baqueou.

— Senhor visconde! — gritou Manuel Gomes.

— Não me acertaram, amigo – gritou o velho visconde, lançando-se fóra da carruagem com duas pistolas na mão.

Manuel Gomes viu logo correr em direcção a elles cinco homens armados de varapaus. N’um abrir e fechar de olhos desfechou a clavina sobre elles, e arrancando do espadão que trazia, deu um salto para diante do visconde, que se pozera encostado a uma parede com as duas pistolas, armadas nas mãos.

Os cinco assassinos chegaram n’um momento a elles. Manuel fez um rodizio, e conseguiu fazê-los recuar. Travou-se então uma lucta desigual e de morte. A espada de Manuel brilhava como um relampago, ora em rodizio, ora procurando de fio ou de ponta o corpo dos contrarios. Mas estes armados de compridos varapaus esquivavam facilmente o corpo, e o velho soldado começava já a sentir-se cançado com os esforços sobrenaturaes que se via obrigado a fazer. N’um só momento que tomou de descanço um dos varapaus cahiu-lhe em cheio sobre a cabeça. O velho soldado cambaleou. O visconde porém conservava todo o sangue frio; apontou uma das pistolas, e desfechou. Um dos homens cahiu. A impressão que esta morte causou nos assassinos, foi preciosa para Manuel Gomes, que tomou fôlego, e conseguiu reconquistar a primitiva destreza. Mas a lucta era desegual de mais para durar muito tempo indecisa ; Manuel Gomes começava a fraquear de novo, o visconde tinha desfechado sem exito a segunda pistola… tudo estava perdido.

Uma circumstancia porém inesperada veio fazer pender a Victoria para o lado dos quasi vencidos. Um caminhante que subia n’este momento a estrada do lado de S. João da Madeira, mal viu o combate, metteu o cavallo a galope para elle. Infelizmente o visconde que tinha carregado novamente as pistolas, desfechou terceiro tiro, e a bala foi bater na cabeça do cavallo do recem-chegado. Este veio portanto a terra; mas não desanimou ; desembaraçou-se do cavallo, e correu com uma espada na mão para o lado de Manuel Gomes.

Este ao vêr-se soccorrido, tomou alma.

— A elles, camarada — gritou o velho soldado. A resposta do recem-chegado foi um golpe de tal jaez sobre, o craneo de um dos bandidos, que lh’o abriu até os dentes. Manuel Gomes correspondia ao mesmo tempo a esta cortezia, talhando com um golpe de soslaio a cara de um salteador, que se tinha desviado com mais tento, mas ainda assim não tanto a tempo, que não apanhasse no rosto todo o rigor de um gilvaz.

N’esta occasião assomou na estrada um outro cavalleiro.

— Narcizo ! — gritou o que tinha chegado primeiro.

Os bandidos lançaram-se então a fugir, e aquelle a quem tinham chamado Narcizo partiu á brida em perseguição d’elles.

Ainda elle não tinha tido tempo de chegar da perseguição em que se empenhava, e o visconde mal podéra ainda serenar de modo que podesse agradecer ao seu salvador