Um exército? Mas ele não precisa de um exército além do Varapau, do burro e do cão. O varapau varre um feira, tão eficazmente como um canhão krupp.

“As alegres canções do norte” Alberto Pimentel (1905)

Um duelo a valer.

(…)Entrementes, o cavalo, montado pelo guarda do Vitorino  recuando, para não pisar um homem, derrubou a Eufrásia.

A Eufrásia, irada; esbravejou :

— Arre, que é bruto.

Um outro, também criado, pimpão, afamado jogador de pau, varredor de feira, encostado ao cajado, retorquiu, friamente zombeteiro — Não enxovalhes a rainha.

Da multidão, que ria fazendo coro à moça, gritou terceiro:

— Olha que ela tem o pai alcaide.

— E o marido deputado — mal disse o primeiro, porque as silabas finais extinguiram-se, ficaram abafadas debaixo da lençada de tremoços, que a Eufrásia chapou na boca do atrevido.

Uma gargalhada geral açulou o rapaz, obrigou-o a levantar o varapau, que encontrou no ar o cajado dum cantoneiro municipal, empurrado pelo Xavier para defender a Eufrásia.

Os paus pesados, ferrados, cruzaram-se e logo se separaram, defendendo as cabeças, agredindo em pontoadas, descarregando-se em golpes, sempre aparados pelos dois, que saltavam para os lados, recuavam, avançavam, abrindo praça no meio do povo.

Suavam ás bagadas, sem chapéu, sem jaleca, caída na refrega, a camisa aberta, mostrando, a cobrir o peito, como coiraça, a cabeladura negra, hirsuta. Retesavam os músculos dos braços, acuavam para se defender, pinchavam para se alcançar. Calara-se a música e de todos os lados afluía gente, ávida de curiosidade, atropelando-se, pisando os mais fracos, formando grossa corrente, numa impetuosidade de fereza animal. Era uma revolução — todos se levantavam, todos corriam por ver correr, todos se empurravam porque se sentiam impelidos para o torvelinho da poeirada, para a mole da gente, para o inferno da vozearia. Por entre as lamurias, aflitivas, das mulheres, o choro das crianças, os aplausos, calorosos dos homens, ouvia-se a pancada, seca, rija, dos cacetes a medirem se, a chocarem-se.

O cantoneiro, perdendo terreno, foi de costas a duas mesas de capilé. Tiniam, feitos em pedaços, os vidros dos copos e das garrafas; chocalhavam, a rebolar nas pedras, as latas do açucar; tilintavam, a cair da gaveta desconjuntada, as moedas de cobre; e as vendedeiras, em choroso alarido, gritavam á del-rei.

O cantoneiro estacou sem terreno, cobriu-se com o pau, limitou-se á defesa. O outro atirou-lhe, e o cantoneiro levantou o cacete, aparando a pancada no ar, mas com o choque, foram-se-lhe a baixo os braços, derreados. E assim, descoberto, já não pôde livrar-se doutro golpe, certeiro, no meio da cabeça, aberta em brecha, a repuxar sangue.

Com o ferimento saiu da multidão um grito de aplauso, em que se expandia naturalmente o entusiasmo pela luta, a aclamaçâo da vitoria  o interesse pelo jogo; em que se mediam dois dos melhores cacetes dos arredores, com partidários divididos, que, mais civilizados, teriam feito rendosas apostas pelo vencedor. Esse grito ressoou como um triunfo:— Eh! Zé!…

O Zé não se demorou em agradecimentos, voltou costas, abriu rua fazendo sarilho com o pau, saltou para dentro duma insua, e perdeu-se nas milharadas.

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Francisco Eduardo Solano de Abreu “Um anjo sem azas” (1907)

Uma mulher a sério!

No alpendre do carpinteiro reunia-se o povo do lugar onde as novas vinham a lume, frescas, em jeito de escárnio e maldizer. cónego estava sempre no eixo da discussão e agora os circunstantes debruçavam-se sobre a eventual prole ou filharada de D. Celestino, lá para os lados da Serra. Não se sabia ao certo quem eram as beatas apanhadas pela rede do pároco que geria mais de uma freguesia do concelho. Desconheciam-se, por ora, casos de pedofilia, coisa tratada com pau de marmeleiro, deixando o energúmeno com o crânio desfeito, seguramente.

– Seguramente que ele não se mete com a tia Belarmina, porque, se o fizer, fica com as costelas partidas – diz o Aristides.

– Como assim? – indaga o Fortunato.

– Ora, não sabes que ela leva, normalmente, o namorado, noite adentro, à própria casa, em Cavião? – pergunta o Aristides. No regresso, sete malandros atravessaram-se-lhe no caminho e ela, com o pau de marmeleiro, que andava sempre consigo, atirou-os por terra!

– Essa é que é uma mulher a sério – interrompe o Cego da Catrina! É a única que não tem medo do tardo e vai ao moinho, sozinha, a qualquer hora da noite.

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“A vida é um ensaio” – Adriano Correia de Pinto (2010) 

Bravo Jardineiro contra Caceteiros

Cena de romance histórico sobre as guerras liberais portuguesas, em que um jardineiro armado de varapau, para proteger um jovem, bate-se com um grupo de caceteiros enviados pelo morgado.

“Distinguiram por fim ao longe uma figurinha de militar.

Era João, vestido de guarda nacional, farda curta de saragoça portuguesa, com botões brancos, gola azul claro, laço azul e branco no chapéu redondo.

Do ponto onde estava, o mirante sobranceiro ao pátio, em face ao alpendre da escada, ia vê-lo entrar e, talvez como antigamente, ele viesse falar-lhe, arrependido da imprudência.

Pensando assim, seguia-o Maria num olhar de ansiedade, encobrindo-se com as trepadeiras do caniçado, para não lhe dar a confiança de mostrar que o esperava.

Vinha já perto, quando notaram dentro movimento desusado.

Corria o quinteiro, e meia dúzia de cavadores de enxada, batendo os pés descalços na terra endurecida pelo calor, varapaus ao ombro, falando alto.

Desacorrentara o criado dois grandes cães de fila, amarelos, rabo cortado, focinho negro, faces ameaçadoras, que de noite rondavam ganindo e uivando.

Ao chegarem ao pátio, ocultaram-se na cocheira homens e cães, e o quinteiro foi esconder-se por traz do postigo, como se quisesse fecha-lo mal entrasse João.

– Que é isto, José? – perguntou Maria, suspeitando uma violência.

– Ordens do senhor morgado – respondeu ele, rindo alvarmente – não quero saber!

Mas Josefa da Esperança, muito nervosa, nem lhe dera tempo à resposta, e ao ver João em frente do mirante, avisou-o:

– Não entre, que lhe querem bater!

Maria, correndo ao muro, bradou-lhe também:

– Foge, foge!

Numa grande excitação, gritava a prima:

– Aqui d’el-rei! Aqui d’el-rei!

Ele recuara ao ouvir os gritos e, vendo aparecer ao postigo a cabeça lanzuda, compreendeu que lhe faziam uma espera.

Desembainhou a baioneta, aprumou-se garboso, e avançou muito pálido para a porta, que de dentro fecharam com estrondo.

Sentiu então Maria que o amava, vendo-o encarnar o tipo glorioso, cavalheiresco, da imaginação das raparigas, geralmente fixado nos que têm por ferramenta a espada e a lança do cavaleiro andante de outras eras.

Dirigia-se-lhe com o coração nas mãos, como ele no pomar, num rubor de sangue, lavada em lágrimas, pondo as mãos:

– João, João, não te percas por minha causa!

Sem a atender, batia exasperado no portão com o punho da baioneta, bradando querer falar ao senhor Martinho Vasques.

Ouvindo ladrar ameaçadores os cães de guarda, virou-se Maria para o pátio.

Aos gritos de socorro de D. Josefa, correra de dentro o jardineiro com um grosso varapau cruzado como a espingarda, a ponta á altura dos olhos, fortemente cingido ao corpo.

– Querem bater no Joãozinho! – explicou-lhe ao vê-lo.

Correu o veterano ao postigo, aferrolhou-o, e berrou aos caceteiros que se fossem embora.

– Quem manda aqui é o fidalgo! – respingou o quinteiro, fazendo-se forte à frente do bando.

Mas os camponeses, receando as fúrias do velho, mantinham-se indiferentes, apoiados aos bordões, num riso estúpido.

– Deixe-me abrir a porta! – insistia o José da Quinta, querendo deitar os cães, segundo as ordens do amo.

– Primeiro te racho de meio a meio! -ameaçou mestre Jacinto, encostando-se ao postigo.

– A vem-te com estes! – casquinou o quinteiro, abrindo com um pontapé a porta da estrebaria.

Saíram ladrando excitados _Marujo_ e _Sultão_, mas conhecendo o jardineiro, não lhe pegaram.

– És pior que os cães, que os animais não têm entendimento e não fazem mal só porque os mandam!

E o velho rilhando o dente, na fúria que o tornava terrível, avançou, crendo-se em plena batalha, e fez recuar o capataz e o rancho, levando-os de roldão até ao fundo do pátio.

Ai, metido em brios, tentou defender-se o mandatário do morgado, mas caiu, lavado em sangue, com uma cacetada na cabeça.”

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“Os Bravos do Mindello” – Faustino da Fonseca (1906)

Contra os caceteiros

Os caceteiros, eram homens pagos para bater noutros por motivos políticos. Não eram no entanto, guerreiros, como os clássicos mercenários, que davam a vida na batalha, mas cobardes, que a troco de dinheiro batiam em gente geralmente indefesa, com o objectivo de causar terror e calar os opositores de quem lhes pagava.

O caceteiro e o jogo do pau nada têm a ver, pois nunca se conta historia de um caceteiro a lutar bem com a o seu cacete, pois bater em alguém desarmado nada custa, não requer arte, e o jogador de pau, tem sempre um adversário à altura, com quem se debate de igual para igual, ou mesmo contra vários adversários.“A honra exigia um combate frontal, de homens que se olhavam e mediam nos olhos”

Várias são as histórias na literatura que nos contam a honra do lutador de pau, que não ataca quem não trás vara, que defende o seu próprio adversário quando este mostra valor, por isso, vamos aqui defender os valores do “puxador” português, contrastando-o com a cobardia de alguém que simplesmente bate com um cacete.

E para que tal não se perca da memória, e que se continue a praticar o jogo do pau como arte de combate, e não de cacetada, fica aqui uma antiga mas boa explicação do que é o caceteiro.

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“Caceteiros miguelistas a confrontarem homens desarmados” 

“Digam lá o que quiserem políticos, e casuístas, que é tudo quase a mesma raça, escrevam quanto lhe lembrar os jornalistas, e os que o não são, ralhem muito os que perdem, que são poucos, com as novas tendências sociais, e queixem-se os que lucram, que são todos, do pouco que se conquista polegada a polegada nesta santa cruzada do progressivo melhoramento social, a verdade é que a civilização caminha incessantemente, e não há fechar-lhe as portas; se lhas fecham, faz pé atrás  e arromba-as! 

Pois bem: se isto assim é, a geração que nos suceder há de ignorar a significação de muitos termos, que aliás hoje são entre nós vulgares, e trivialissimos. É necessário deixar-lhos explicados com bastante clareza para auxilio dos futuros cronistas, e dos Santas Rosas de Viterbo, que a providencia lá tem no seu grande reservatório para compiladores de glossários de palavras antiquadas.
(…)

É o que há-de acontecer com a palavra caceteiro, se nos não mente a confiança que temos no bom senso português  e na constante, e severa aplicação dos bons princípios  assim haja quem os aplique, e quem lhes possa sofrer a aplicação!

Com efeito ou quanto se nos tem dito a respeito de progresso, e civilização  são refinadas mentiras, ou há-de chegar um tempo, e não muito distante em que não seja possível compreender como alguém se lembrou de introduzir uma ideia pelo método da maceração da carne, da fractura dos ossos, ou pelas fendas abertas no crânio por uma bem puxada bordoada de cacete! 

Se escrevermos a historia do nosso tempo, e contarmos, como é de razão, que houve um período em que a justiça dos princípios se provava à bordoada, que aos espíritos  que a não compreendiam se lhes ajudava o engenho com uma boa sova de pau, que o pensamento imanifestado, e mesmo oculto, e apenas imaginado atraia sobre a vitima a correcção daquele grande silogismo de carvalho, talvez não queiram acreditar-nos!

Pois filosofem como quiserem os críticos futuros; o caso foi verdadeiro, e por vergonha nossa passou-se nesta terra portuguesa no século décimo nono!

Porém a incredulidade, que a narração de tais sucessos deve produzir, aumentara quando a história acrescentar, que pelas mesmas mãos em nome de diversas causas se produziram os mesmos efeitos! Caceteiro chegou a ser oficio como aguadeiro, barbeiro etc.

O caceteiro não tem opinião politica: é um homem corrompido, e devasso, sedento de ouro, e de licença, que espreita nos olhos de quem pôde conceder-lhe uma destas coisas ou ambas o sinal de extermínio  que ele sabe adivinhar com um instinto prodigioso. Que reine o sr. D. Miguel, ou a filha do sr D. Pedro, que o governo seja absoluto, ou representativo, que o sistema governamental seja rigoroso, ou indulgente, que os ministros sejam honrados, ou prevaricadores,  o caceteiro está pronto a castigar a opinião vencida, a atacar cobardemente o desgraçado, a tirar-lhe mesmo a vida, se tanto for necessário! 

A causa, que sucumbe, pôde contar o caceteiro no numero dos seus inimigos, mas o mesmo, o mesmíssimo homem com o entusiasmo do partido abandonado ainda quente da vespera, porém com o braço vigoroso de actualidade  e com a cabeça fervente dos santos princípios, que se incutem a pau.

Crê ou morre, diziam os turcos aos cristãos, mas se as meias luas ficavam humilhadas diante do sinal da redenção quem viu o soldado turco voltar a Fez, entrar na mesquita, degolar os crentes, ou pôr-lhes o alfange aos peitos para que adorassem o Crucificado? Ninguém.

Pois isto, que os turcos não faziam, fazemo-lo nós, profetas da civilização  bárbaros de nova, e danadissima espécie!

E louvado seja Deus, neste negocio ninguém pôde dizer a seu irmão racca: todos os partidos tem culpas no cartório, e grandes, enormíssimas.

Nunca apetecemos poder de nenhuma espécie  mas se o tivéssemos cobiçado pleno, forte, e sem limites, seria para enforcar um caceteiro em cada terra onde os houvesse, como o marquês de Pombal fez aos ladrões entre as ruínas do celebrado terremoto.

– Em quanto for possível espancar um homem, porque a combinação das suas ideias, dos seus interesses mesmo o dirigiu neste ou naquele sentido politico, o grito de viva a liberdade é uma solene mentira, uma destas burlas indecentes, que se podem fazer a um homem mas que a uma nação nunca se fazem impunemente.

E o mais é que ninguém tirou ainda até hoje proveito de semelhante sistema; pelo contrario; governo, que tolerou os cacetes, que imaginou inspirar confiança, estabelecer o credito, e firmar a ordem a pau  enganou-se, e caiu miseravelmente: autoridade que os não castigou, incorreu na indignação publica, particular, que os incitou, ou premiou, tarde ou cedo veio a ser vitima deles.

Mas digamo-lo também para consolação dos verdadeiros crentes, dos que acreditam de boa fé na força da sã, e inconcussa doutrina da liberdade, e da ordem, em Portugal todos os homens bem educados detestam os caceteiros, e Lisboa, estamos em que já não os suportaria nem assalariados nem oficiosos; se pudesse ainda suporta-los, se tantos anos de educação liberal não tem produzido ao menos aquele resultado, então…. então que?

Cuidavam que desesperávamos da possibilidade pratica dos bons princípios  Enganam-se, desesperariamos dos homens, e não teríamos menor razão para lhes applicar a exclamação, que o servilismo do senado arrancou ao próprio Tibério  homines ad servitutem paratos.”
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“Roberto Valença – Romance” António Augusto Teixeira de Vasconcelos (1848)

Maio moço – Miguel Torga

O infeliz menino órfão que, para defender o rebanho do seu malvado tutor, matou o lobo feroz, transformando-se em herói das aldeias.

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“(…)Os nevões, o nevoeiro e o codo são a bem-aventurança dos lobos. Num desses dias, em que só havia brancura de morte por todos os lados, de repente, surgido não sabia de onde, o Gonçalo deu com os olhos num a abocar-lhe uma cordeira.

O cão de guarda ficara-se na povoação, atrás duma cadela na cainça. Alentado e de poucas festas, era ele que dava paz e segurança ao rebanho, numa vigilância guerreira, simbolicamente representada na coleira eriçada de pregos. Por isso, sem aquela protecção, o mesmo terror que tresmalhou as reses, siderou o pastor. Garanho de frio e de medo, o pobre coitado mal podia segurar no lódão. Bambeavam-lhe as pernas, e o coiro da cabeça queria despegar-se-lhe dos ossos. Mas, subitamente, por mistérios insondáveis da natureza humana, ergueu-se-lhe dentro do corpo acobardado uma onda de coragem. E arremeteu com tal fúria sobre o ladrão, que parecia uma fera a avançar sobre a outra.

– Grande como!  – gritou, a dar solidariedade aos berros da ovelha agadanhada, enquanto levantava o varapau.

Filado à cernelha da churra, o salteador negava-se a largar a bocada. Ágil e teimoso, tentava arrastar a presa e furtar-se aos golpes. O gosto doce do sangue exacerbava-lhe a fome e assanhava-lhe a teimosia. Tanto montava as bordoadas choverem, como nada.- Cabrão! Cada vez mais desesperado, o cacete ia e vinha, numa raiva animada de minuto a minuto pela insólita duração da violência.

– Larápio dos infernos! Impávidos, os montes, numa neutralidade polar, assistiam à 

luta. Nem os comoviam os balidos lancinantes da borrega, nem a angústia do garoto a lutar à sobreposse.

– Não a levas, nem que te danes!

O ímpeto inicial, fruto da espontânea reacção a qualquer desafio que nos é feito, dera lugar a uma serena e voluntariosa consciência protectora. Rei dos animais pela razão, o pastor perdera o sentido do perigo e o terror dele. Agora era um inexorável fiscal da ordem a impedir desmandos.

– Excomungado! Num salto imprevisto, o inimigo arredara-se de uma estadulhada que parecia certeira, e o cajado batera em falso num fragão.

– E esta?

Desiludido com a perícia da emenda, que foi rápida e lhe assentou em cheio no lombo do lobo hesitou. Mas quando se resignou a abandonar a vítima e se dispôs a fugir, o Gonçalo cortou-lhe a retirada.

– Tem paciência: agora ficas aqui! Disse, e redobrou a força das mocadas.- Não pões os queixos em mais nenhuma! Derreado, o lobo arreganhava os dentes inutilmente. Com mais três ou quatro amacios, estava liquidado, com a espinha quebrada, caído aos pés do vencedor.

Calhou ser dia de feira em S. Lourenço, e o Nicolau almocreve, que regressava a casa, dar de chofre com aquele espectáculo: o catraio, pálido de emoção e possuído ainda da fúria vingadora, a migar os ossos do agressor; este, esquadrilhado, a babar a neve do sangue da agonia.

– Com trinta milheiros de diabos! Tu onde arranjaste tanta coragem, rapaz?!

O pequeno limpou o ranho do nariz.

– Filho de quem o pariu! Olhe o que ele fez!

Sem vaidade, singelamente, mostrava a mola que o empurrara – a ovelha morta. O Nicolau, e logo a seguir Dornelo, é que não viam no feito senão a valentia na sua pureza original. Quantos e quantos, em semelhante situação, não teriam dado às de vila-diogo!

E a vida do Gonçalo transfigurou-se. Relatada a façanha, e provada com a presença da bicheza, que percorreu o povoado em procissão, um outro sol iluminou os seus gestos, as suas palavras, a sua solidão. Todos passaram a dar-lhe a dignidade que lhe negavam até ali. Os grandes queriam protegê-lo; os pequenos imitá-lo. A mestra protestou que era uma barbaridade deixá-lo analfabeto; o abade declarou que Ia ensinar-lhe o catecismo; a ração aparecia-lhe dobrada no bornal.(…)”

“Os contos da Montanha – Maio moço” Miguel Torga (1941)
http://www.wook.pt/ficha/contos-da-montanha/a/id/3469019 

Náufragos na selva

Neste conto, um grupo de náufragos portugueses capturados por uma tribo, concorda ajudar seus captores em importante peleja com tribo contrária.

(…) Pouco antes de romper a aurora já percorrem a mata em total silêncio, e logo surgem à beira de um rio, junto à aldeia inimiga; e tanto se chegam às bordas do dito remanso, distante não mais de cem braças do reduto contrario, eis senão quando saem a campo muitos inimigos prestes para a luta (como se os aguardassem desde a véspera) , formados em dois compactos troços, e se lançam sobre os sitiantes em passo acelerado, do que mui surpreso, pensa João Carvalho refluir para a mata com os companheiros, mas qual. a essa altura vão já engalfinhados Turuna, Cunhambá, Impié, lperó Araruí, Guaiabi e Mairu (nominata completa dos gentios que cativaram os náufragos) e, pese a inferioridade de forças, pelejam com denodo no campo aberto a beirame do rio. Turuna, mostrando toda a chefia de que é capaz, não só se bate com desassombro  mas esforça os comandados, gritando-lhes refrões de estímulo, ao mesmo tempo em que pede aos portugueses o cumprimento da palavra empenhada no sentido de aderirem logo à briga antes que seja demasiado tarde.

Cabe ao bacharel, recém investido no galardão da coragem, pôr cobro à desesperada situação, metendo-se de peito aberto na refrega; e numa trovejante voz que põe em brios os portugueses, ordena, à carga por Santiago, que aqui estamos por brigar e não por apreciar o massacre e perda de nossos liados. A essa destemida exortação saem os quatro a campo, e praz a Deus que tão bem se hajam na investida que logo quebram as fileiras inimigas, pondo metade ao chão com certeiros golpes de varapau, que manejam à minhota, numa destreza desconhecida dos contrários(…)

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“Tratado Da Altura Das Estrelas”  – Sinval Medina (1997)

Uma mentira letal

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“O Tio Joaquim”

Conto com cena de combate a varapau.

“Entre os trabalhadores da quinta, havia um chamado António  bom rapaz, é verdade; mas que tinha um defeito, de que se não corrigia. Era mentiroso, como os que o são, e quando o não acreditavam, amontoava juras, qual mais tremenda ou de mais responsabilidade e respeito pai a um homem de bem.

E era pena; porque poucos havia tão laboriosos como ele  Era conhecido pelo— galo da madrugada—titulo bem justificado em vista do se apressava em concorrer ao trabalho: e não poucas vezes os pobres benefícios  que o seu magro pecúlio lhe permitia fazer, vinham a constar, pelos outros e não por ele  muito em seu abono e boa reputação.

O tio Joaquim, conselheiro honorário daquela republica tinha-o repreendido muito; mas aquele maldito sestro não o queria o António perder nem a bem nem a mal. Era o seu senão, que lhe acarretava não poucos dissabores e com o que não pouco prejudicava os outros.

Era num domingo, e depois da missa do dia, no adro da igreja estavam reunidos, em mó, os saloios daqueles sítios que tinham concorrido ao santo sacrifício  De fatos domingueiros, e varapaus ferrados, discorriam pelas novidades do lugar, exactamente como os nossos elegantes à porta do Marrare, ou nas salas do Grémio.

Diga-se a verdade; as Marias e as Joanas não deixavam de influir naquelas reuniões, porque não poucos eram os que ali compareciam levando em mira falar ás suas requestadas, ensaiar requebros, ou ajustar entretenimentos para as horas de sesta ou para as tardes dos dias santos.

O nosso António também não faltava à reunião, e já por mais de uma vez fizera das suas, sem consequências de maior, pelo pouco credito que tinham naquele mercado campestre as notas do nosso caramboleiro.

Havia no lugar uma rapariga que se podia chamar uma perfeição, e que fazia tanta diferença das suas companheiras, como a rosa de musgo das rosas carrasqueiras dos valados.

Era gentil e mimosa,não tinha as cores de saúde  nem aquele acerejado do sol, ou formas robustas e quasi viris da raparigada do campo; mas era mais esbelta, mais pálida  mais clara e com uns olhos tão negros, tão negros, que lhe saiam da alvura do rosto, como dois diamantes negros engastados em esmalte branco.

Vivia arredada e em recato, e não aparecia em arraial ou festa, senão de ano em ano e quase por milagre.

Chamavam-lhe—a fidalga,—e o nome casava tanto com a sua distinção de maneiras e garbo de porte, como o soar das ave-marias com os descampados das serras.

Como já se deve supor, os fragatas da terra tinham pretendido as honras de arrojado; mas debalde, porque os rejeitava, e quase todos doscoroçoados tinham desistido da empresa.

Digo quase todos, porque dois ainda lhe arrastavam a asa, um, (aqui em segredo,) era atendido e bem olhado; o outro, mais feliz, nem falar nisso é bom, mordia-se de raiva pelos desdens que sofria, e pelo pouco em que eram tidos seus requebros e paixões.

A escolha de Emília tinha sido acertada, porque o José da Avó era o mais guapo moço daquelas duas léguas em redor. Desempenado e direito como uma vara de abrunheiro, valente como um pau de carrasco, generoso e de brio, como nenhum: nem o mais pintado lhe levava as alampadas em trabalho de fazenda, em jogos de pau, ou em balaricos de domingo.

E cantigas! Sabia-as ele cantar, como os que as sabem; entoava uma desgarrada ou sustentava um desafio, mais afinado e a preceito do que muitos desses italianos em segunda mão, que os empresários nos impõem como notabilidades cantantes.

O outro pretendente não era muito cheio de não presta: mas ao pé do José da Avó ficava a perder de vista, o que não admira; porque vasados naqueles moldes não havia muitos no lugar. Ele porém, como não queria atender à razão, danava-se jurando pela pele do ditoso preferido.

Este era o estado da questão na manhã do tal domingo, e os dois rivais conservavam-se a distancia respeitosa no meio de dois grupos distintos.

Tinha saído já quase toda a gente da igreja, quando Emília se retirou, sem que lhe faltassem comentários, enquanto passava por meio dos grupos. .

—Olha a delambida, soltou dali uma das raparigas mais feias da terra, parece que vai com o rei na barriga, nem olha para a gente.

—Era o que faltava, a fidalga!

—Vai toda enlevada no seu José, tem medo que lho tirem do lance.

Nisto o nosso António  que não queria ficar atrás  também se intrometeu na conversa, dizendo com modos de quem estava corrente com os mistérios daquele circulo:

— Pois faz ele bem em perder o seu tempo, porque ainda não há muito que vi o Miguel de conversa com ela á porta de casa, e pelos jeitos que a coisa levava, não era a primeira vez que se falavam.

—Ora tu sempre tens uma língua!

—Um raio me parta se minto; tinha-me calado e feito vista grossa, mas agora ferveu-me o sangue quando a vi assim como quem queria deitar lama para a cara da gente.

As palavras de António não tinham caído no chão. José desconfiado, como todos os namorados; estivera de ouvido à escuta e não perdera nem silaba  Noutra ocasião voltaria de certo as costas ao maldizente, mas desta vez mudava o caso de figura: o ciume acreditava a voz do mentiroso e a tremer chegou-se ao pé dele perguntando-lhe com voz indecisa:

—Juras que é verdade o que acabas de dizer?

—Se é! os diabos me levem se minto; eu por mim não queria causar-te nenhuma aquela; mas assim como assim mais tarde ou mais cedo havias de vir a sabe-lo; e, verdade verdade, ela não te merece.

—Basta, lhe retorquiu o pobre José, e foi-se como um raio até onde estava o suposto arrojado.

Inútil é dizer que tinha sido tudo isto enredos e obra de António  Soltára as primeiras palavras como por demais, sustentara o dito por capricho, mais tarde para que não supusessem que tornára com a fala ao bucho por medroso.

Do outro lado do adro uma floresta de paus se levantava no ar, e já as navalhas estavam fora das algibeiras; os dois tinham-se travado de razões, e como palavra puxa palavra, tinham passado dos ditos a vias de facto e malhavam um no outro como se fosse em monte de milho.

Ambos tinham partidários  e por conseguinte a luta assumiu proporções maiores; porém por muito encarniçada que fosse entre os partidos, parecia um brinco de crianças à vista daquela em que os dois se tinham travado. Davam como quem se despedia do mundo, e como quem desejava ver estendido no chão para sempre o seu contrario.

Ao principio arrancaram dos paus e começaram a atirar as primeiras pancadas, que quase todas caíram em cheio; até que Miguel, depois de ter jogado umas poucas de sortes ao seu adversário  e como ambos estavam descobertos e só queriam dar, dissimulando uma pancada à cabeça, lhe dirigiu o pau por meia volta no ar ás pernas. Quando lá chegou já o seu adversário o tinha procurado aparar, porém tanto em mal, e tão puxada d’alma ia a contraria, que o pau colhido no meio, não o aguentou e partiu-se; e o outro não encontrando resistência no corpo de José, porque ele já lho tinha furtado, foi de encontro ás pedras do adro e partiu-se também.

Vendo-se desarmado, Miguel não perdeu tempo: correu sobre o inimigo com uma navalha e baldeou-o logo no chão jorrando sangue por uma ferida no ventre.

O assassino, apenas cometido o crime, tomou as de Yila Diogo, e a desordem começou a apaziguar se com a chegada dos cabos da terra, que tratavam de remover o ferido e de prender os combatentes.

O causador de tudo isto tinha, logo que viu tomar ao caso uma feição que lhe não supusera, procurado cocegar o motim, confessando a sua mentira, porém já era tarde, naquelas alturas qualquer intervenção seria inútil  teve pois de assistir arrepelando-se, dizendo mal à sua vida, áquela triste cena, e prometendo, com mil juras que não mentiria nunca mais; ajudou soluçando a levar o ferido para sua casa na maca, que tinham ido buscar, e acusando-se todo o caminho de ter sido ele, e só ele, o culpado de tudo, que sucedera.”

“Os contos do tio Joaquim” –  Rodrigo Paganino – 1861

Definições de dicionário

Algumas expressões utilizadas ainda hoje em dia para significar luta ou agressão de forma genérica, têm porém, geralmente sem a maior parte das pessoas saber, origem na utilização do varapau como arma de defesa e ataque. Um bom exemplo disso será a expressão “porrada” geralmente utilizada como forma de ameaça, e nos dias de hoje, em que já não se anda geralmente de cajado, especialmente nas cidades, ela ainda é bastante utilizada, obviamente, de forma extremamente informal. Além deste, ficam aqui mais alguns exemplos.

porrada
1. pancada com porra (moca); sova; tareia
2. tumulto em que as pessoas se agridem fisicamente; pancadaria
1. Sova de pau. = PANCADA

bordoada 
1. golpe dado com bordão; paulada
2. Pancadaria; sova.

banano
1. [Regionalismo]  Pau comprido e grosso. = BORDÃO
2. [Informal]  Bofetão, paulada.

pancada 
1. golpe ou conjunto de golpes dado(s) com panca, com pau, com a mão, etc.; ataque à paulada; agressão; bordoada
2. castigo corporal

Definições tiradas dos modernissimos e pretigiados dicionários online da lingua portuguesa da Priberam e da Porto Editora:
http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa
http://www.priberam.pt/dlpo

 

A morgadinha de Val-d’Amores

morgadinha
SCENA VII – Frederico,  JOÃO LOPES, e cabos

Joao Lopes – Olhe, se foge, que o snr. vae levar pancada de crear bicho. Estão-se a preparar os valentões.

(Frederico apita rijo. Apparecem de differentes sahidas 6 cabos de policia que escutam Frederico, em quanto se repete a cantilena. Finda a cantilena, ouve-se fóra o rumor da desordem, e o estalido dos varapáos. As cantadeiras fogem alvoraçadas a dar gritos.)

 

SCENA VIII – Frederico, cabos, um desconhecido, e camponios

Frederico (com intimativa bellica) – Formem em linha. Carregar armas!

Um cabo – Estão carregadas.

Frederico – Vamos ser atacados pelos desordeiros. Á voz de fogo, atirem.

(Vê-se atravessar a scena por entre o povo um Desconhecido de chapéo derrubado, o rosto coberto por um lenço, de caraça, polainas e briche nas pernas e pés, com um grosso páo de choupa. Proximos de Frederico os valentões param, com os páos cruzados nas pernas, gingando em attitude ameaçadora. Frederico, não se desvia dos cabos. De repente, rompem de fóra uns poucos varrendo o campo a pauladas.) 

Frederico- Cabos de policia, sentido! Preparar armas!

(Sáe perto da bocca da scena o Desconhecido. Escosta-se ao páo observando os movimentos dos valentões, os quaes vem já avançando, já recuando, crescendo sobre Frederico.)

Frederico (aos cabos) – Aperrar armas!

(Uma paulada faz soltar a clavina das mãos d’um cabo. Os outros fogem. Frederico recúa, apitando rijamente. No maior aperto, o Desconhecido salta para a beira d’elle, descobre a choupa do páo, e arremette com os aggressores. Estes, forçados pela destreza, fogem,logo que o primeiro cáe d’uma paulada. A vozeria cresce no momento em que o palco está despejado. O Desconhecido trava do braço de Frederico, e o traz á bocca da scena.)

Frederico – Quem é o valente homem a quem devo a vida?! quem é?

Morgadinha (arrancando o lenço do rosto) – Sou eu! salvei-te, Frederico!

Frederico – Ó morgadinha de Val-d’Amores! Tu!.. oh! tu!.. Como és ideal e angelica! (Ajoelhando.)

FIM DO SEGUNDO ACTO.

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“A morgadinha de Val-d’Amores” – Camilo Castelo Branco (1871)

Cura portuguesa para negaças

A discussão em torno de mais garrafas de Antárctica prosseguia sobre capoeiras e capoeiragem lembrada pela rasteira que o mulatinho aplicara a indivíduo muito mais forte do que ele. O monitor contava as proezas que presenciara no Maranhão de onde provinha e por brincadeira censurava os rapazes quando duvidavam que o vendeiro por ser português não podia enfrentar um capoeira.

– Tem mondrongo que sabe o que é rasteira, rabo de arraia, cocada. Tem sim senhores. Na Bahia, onde eu me demorei antes de vir para cá – dizia o ginasta – eles de tanto viver com bamba aprendem quando moços a arte. Eles rapa um homem, dá um corta-capim tão bem como qualquer cabra de tiririca. Nem precisa ir tão longe, mesmo da festa da Penha no Rio de Janeiro vocês pode ver.

– Esses já são filhos do português, porque para ele a arma é o varapau que eles gira em torno deles como moinho. Agora como é que você quer que apareça o homem com vara grande na festa da Penha?

– Eles não vão passear com vara, mas eu vi como de repente eles pode aparecer saidos não se sabe de onde e varrer de vara em giro uma festança. Ninguém chega perto.

– Sendo assim, talvez…

– É mesmo – Interveio o sargento Evangelista –  me lembro no Rio do dono de um boteco da ladeira João Homem, que era taco na vara. Certa vez o Onofre da Balainha se implicou com ele e todos começaram a dizer “Óia português, toma tento com esse cabra, óia que ele é preverso! É melhor esperar a ronda!” Qual o quê, de nada adiantou. O português pegou a vara que estava atrás da porta, saiu do boteco e deu cabo dele. Não adiantou o cabra negacear, a vara assoviava, ia por toda parte e na terceira vez que o alcançou, ele já estava tonto. Isto porque o português estava farto de conhecer negaças sabia lidar com elas.

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“Três Sargentos” – Aldo Ney (1985)