Jogo do pau retirado das escolas

Carta enviada à DRELVT – ECAE Sintra e Mafra / Amadora, Cascais e Oeiras.

Ex. Mos Senhores!

Expresso aqui a minha tristeza e lamento bastante ao saber que o Jogo do Pau e os Jogos Tradicionais ficaram de fora do projecto de adesão das actividades do Desporto Escolar para o próximo ano lectivo 2011-2012. Actividades que fazem parte da nossa cultura e de uma riqueza imensa, é de lamentar quem teve esta pobre ideia de as retirar do Desporto Escolar. Depois de 20 anos a lutar por divulgar e promover o Jogo do Pau Português – em todas as escolas onde leccionei a disciplina de Educação Física, sempre desenvolvendo núcleos de Jogo do Pau Português, onde os alunos tiveram a oportunidade de conhecer uma Arte Tradicional Portuguesa de uma riqueza enorme, invejada e cobiçada por muitos Países que dão o real valor a esta nossa Arte Marcial tão pouco conhecida no nosso País. É de lamentar o que está acontecer. Estamos a perder as tradições, estamos a perder actividades que fazem parte da cultura portuguesa, estamos a empobrecer o Desporto Escolar. Agradeço a todos os que acreditaram e que ajudaram a promover e a contribuir para o desenvolvimento dos Jogos Tradicionais e do Jogo do Pau Português.

João Gama – Professor Responsável pelo Núcleo do Jogo do Pau da Escola Dr. Rui Grácio- Montelavar.

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Brandindo o varapau: |/||/||/||/||/||||/||/||/||//

Finalmente o jogo do pau tem um “emoticon”, elemento essencial à comunicação virtual, utilizado para fins menos formais.

No entanto esta expressão não pode apenas ser utilizada por praticantes ou conhecedores da arte, mas sim por qualquer pessoal que por uma razão ou por outra, nas suas conversações ou comunicações online, pode expressar a sua indignação ou simples necessidade de se exprimir brandindo o varapau!

Mestre Joaquim Baú

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Mestre Joaquim Bau, c.1870-1880

Mestre Joaquim Baú que era natural de Marco de Canaveses, viveu largo tempo na Golegã e não obstante os seus 80 anos ainda jogava o pau em várias terras do pais, tais como, Espinho, Lisboa, Guimarães, Coimbra, Porto, Golegã e outras terras.

Vivia de donativos em troca de lições de jogo do pau. Não tinha uma residência fixa, mas sim uma vida ambulante que o fazia andar de terra em terra.

Foi um grande jogador e um mestre de grande competência, contemporâneo do mestre José Maria da Silveira (O Saloio).


“Jogo do Pau (esgrima Nacional)” – António Nunes Caçador, 1963
Fotografia de Carlos Relvas

Um “diabo” de varapau

Quem, vindo pela estrada a que hoje teremos de chamar “velha”, que ligava a Portelinha à Benfeita, tivesse atravessado a Dreia e transposto o ribeiro “de cima”, e deixasse à esquerda a “casa dos colhereiros” e, logo em seguida, na curva, as “alminhas” que convidavam o caminheiro a rezar pelos que penavam no Purgatório, entrava na pitoresca e tenebrosa “Barroca da Vinha”. Pitoresca porque a estrada marginava formoso soito de gigantescos castanheiros,cujas copas,de um verde claro e alegre, formavam fechado docel, que o Sol a custo rompia; tenebrosa porque o “Diabo”, segundo a tradição, escolhia aquele fresco e umbroso local para aparecer àqueles a quem queria tentar, ou meter medo. Raras seriam as pessoas que, de dia, atravessavam a “Barroca da Vinha” sem levarem o “Credo” na boca e a mão bem nervosamente apertada numa figa. E de noite… De noite, quem se atreveria a atravessar, sozinho, aqueles cinquenta ou sessenta metros de estrada?

Uma tarde, o Manuel “Maneta”, de regresso não sabemos de onde, demorara-se a conversar na Dreia, numa roda de amigos. Cavaqueava-se e bebia-se; “rodada” para por um, “rodada” oferecida por outro, e depois por um terceiro e um quarto, que não queria ficar de somenos. O Sol já havia desaparecido há muito e a noite começava de adensar-se.

– Manuel, são horas – disse alguém – olha que não há luar e a noite vai ser de breu. Daqui à Benfeita ainda é um bocado, e os caminhos estão maus.
– Ainda é cedo – respondeu o interpelado – e o escuro não me mete medo!
– Mas olha que pode aparecer-te o “Diabo” na “Barroca da Vinha” – insistiu o amigo, para pôr fim às “rodadas”.
– Pois até gostava que me aparecesse. Ao menos ia de companhia! – retorquiu o Manuel, com uma bela e sonora gargalhada.

A cavaqueira continuou ainda, mas a evocação do “Diabo” não deixou de impressionar os circunstantes, que, primeiro um, depois outro, foram indo para casa.

Às tantas, o “Maneta” despediu-se e, com uma bengalita de vareta de aço forrada de papel, que estava, então, na moda, meteu-se resolutamente ao caminho, assobiando. Desceu até à ribeira, subiu tornejando para a “casa dos colhereiros”, benzeu-se em frente às “alminhas” e entrou no túnel formado pelas copas dos castanheiros. A escuridão era ali completa, e profundo o silêncio da noite, só interrompido pelo estalar dos gravetos debaixo dos pés do viandante. Súbito, o “Maneta” ouviu uma voz, uma voz roufenha, medonha, pavorosa! Estacou, olhos dilatados! Ouvidos atentos, ansiosos! E a voz repetiu, arrastadamente:

– Ó Manuel, espera aí que eu também vou!

E, detrás de um castanheiro, que depois se ficou a chamar “do medo” ou “do Diabo”, surgiu um vulto branco, enorme, horrendo, a avançar para a estrada, brandindo um gigantesco e ameaçador varapau, prestes a deslombar o interpelado!

Nessa noite, o Manuel Martins chegou a casa muito mais cedo do que contava. Dir-se-ia que teve asas, ou que o seu anjo protector o ajudou a percorrer o resto do caminho! Porque o “Diabo” não foi, porque o “Diabo” ficou na “Barroca da Vinha”, pois não teve “pernas” para acompanhar o “Maneta” na corrida.

A verdade é que só muito tempo depois o “Maneta” acreditou que aquele vulto medonho, horrendo, alveiro, de voz cavernosa, escalafriante e varapau ameaçador, não fora senão o José Gomes que, cortando caminho pelos matos, lhe saíra à frente naquele preparo, disposto a abater-lhe a prosápia com duas boas arrochadas.

Nota: O soito existente na “Barroca da Vinha” desapareceu totalmente com a “malina” que em toda a região deu nos castanheiros. O local está hoje completamente diferente do que era quando ocorreu a aventura, verdadeira, que fica descrita, não só pela falta dos castanheiros que ensombravam o caminho e o tornavam tétrico de noite, mas também porque sobre este veio a construir-se a “estrada de macadame”.

As “alminhas”, porém, ainda estão no mesmo local, reparadas dos insultos do tempo e dos malefícios dos homens, graças ao generoso interesse e patrocínio do Sr.António Nunes Leitão.

José Gomes, o “Diabo” que saiu ao caminho do “Maneta”, era um homem alto, forte e valente, alfaiate de seu ofício que deixou boa fama de si.

Mário Mathias
A Comarca de Arganil – Agosto/1954
http://benfeita.net/histor15.htm

Justiça na Senhora do Viso

O tempo da justiça na Senhora do Viso, decidida ao jogo do pau, no dia 8 de Setembro de cada ano!” *1

Nossa Senhora do Viso
-Festa da Senhora do Viso

A capela da Senhora do Viso está construída na demarcação das freguesias de Caçarilhe e Rêgo.

A sua localização é magnífica. Do seu recinto observam-se em todo o seu redor, belas paisagens de Celorico de basto e doutros concelhos.
(…)
Segundo a lenda que vem sendo contada, de geração em geração, a Senhora do Viso é responsável pelo nosso juízo.

Ouvi muitas vezes as pessoas idosas e a minha mãe dizerem: Deixa-te de toléria. Pede à Senhora do Viso que te dê juízo.

Foi sempre uma festa muito frequentada por gente de todas as idades, das freguesias de Celorico de Basto e dos concelhos vizinhos. Os romeiros vinham ali satisfazer variadas promessas. Dar a volta ao redor da capela de joelhos, novenas, que era dar nove voltas ao redor da capela.
(…)
Aparecia naquela festa o primeiro vinho doce. Era transportado para o recinto em pipas colocadas em carros de vacas, onde era vendido em tigelas e canecas.
(…)
A ordem era assegurada pela Guarda Nacional Republicana, que tinha grandes dificuldades em manter o recinto da festa sossegado.

A certa altura perdia mesmo o controle e limitava-se a proteger a capelinha de qualquer profanação ou estragos.

Naquela data era na festa da Senhora do Viso, que o povo de São Bartolomeu fazia os ajustes de contas, que se iam acumulando durante o ano. Roubo da namorada, tornas de água, negócios, falta de cumprimento da palavra, e outras pulhices.

No acto da infracção, o lesado lançava a ameaça. No Viso pagas.

Todos os homens e moços novos que iam à festa, iam munidos cada um com a sua racha. Pelo caminho para a festa, aqueles que iam já com intenções de saldar contas, por vezes cruzavam-se com os “devedores” e seguiam todos juntos na grande galhofa fingindo serem todos amigos.

No recinto iam gozando a festa e saboreando os petiscos acompanhados por uns bons cartilhos de vinho.

Depois de bem bebidos ao fim da tarde começavam as provocações. Os provocadores de tigela na mão cheia de vinho dirigiam-se aqueles que pretendiam aquecer o lombo e ofereciam-lhe o vinho. Como eles não aceitavam, os desordeiros esbarravam-lhe com a tigela cheia de vinho nas bentas. Outras vezes ao passar davam-lhe um empurrão.

As rachas começavam a trabalhar e o povo fugia para não ser atingido.

A guarda como não conseguia pôr termo à desordem sacudia-os para fora da festa.

Mas o jogo do pau continuava pelos caminhos abaixo, e quando algum tropeçava nas pedras, perdia o equilíbrio do jogo e era-lhe fatal, levava umas boas estadulhadas até ficar desacordado.

Encostavam-no a uma borda e ele ficava a ali a sonhar com coisas bonitas, até desacordar ou aparecer algum caminhante que o socorresse.

Porém, se o ferido não acordasse mais e ficasse a dormir eternamente, para o lembrar era colocada naquele sitio uma cruz ou umas alminhas.

Na Senhora do Viso, não dizia a letra com a careta, porque quando começavam a bater, malhavam sem dó nem piedade. Tinham pouco juízo.

Ambrósio Lopes Vaz
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1 – Luís Castro Leal

“Ilustração Portuguesa” – 19 de Setembro de 1904. Nº46, Pg 732
“A feira e festas na Moita”
“Os Cabos de segurança”

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Cabos de segurança de varapau em cena do século XIX 

“NARCISO E 4 CABOS DE SEGURANÇA DE VARAPAU ”

(…)

‘Stão promptos ás minhas ordens
Os cabos de segurança,
E nós temos aqui dança
Se descubro o tal marau!…
Se eu pilhar o meliante
Ficará bem derreado,
Sentindo sobre o costado
Muito, muito varapau!

“Um bigo em verso” – José Ignácio de Araújo (1860)

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Em Portugal, um cabo de polícia era um cidadão designado para auxiliar um regedor de freguesia na sua função de agente local de autoridade policial. Os cabos de polícia eram escolhidos de entre os cidadãos da respetiva freguesia, estando inicialmente prevista a designação de um por cada oito fogos familiares. Não eram regularmente remunerados pelo exercício das suas funções, só recebendo percentagens de algumas multas cobradas.

Durante o período da Monarquia Constitucional, os cabos de polícia constituiram praticamente a única força policial na maioria do território português, uma vez que, inicialmente, só Lisboa e Porto dispunham de corpos policiais profissionais (as guardas municipais).
A partir de 1867, com a criação dos corpos de Polícia Civil nas capitais de distrito, os cabos de polícia perderam substancialmente a importância no policiamento dos grandes centros urbanos. Continuaram contudo a ser a principal força policial presente nas regiões rurais.

Na sequência da implantação da república em 1910, o novo regime criou a Guarda Nacional Republicana (GNR) com o objetivo de assegurar o policiamento de todo o território nacional. Com a implantação progressiva da GNR nas áreas rurais, os cabos de polícia perderam definitivamente a sua importância, apesar de terem continuado a existir formalmente até 1974.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cabo_de_pol%C3%ADcia 

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Tem se dito e repizado muitas vezes que este ou aquelle deputado foi levado ao parlamento nos escudos dos cabos de policia. Para que esta phrase não venha a induzir em erro a posteridade sôbre o armamento actual dos cabos de policia é bom fazer lhe já d’aqui saber que as armas destes varões assignalados são na occidental praia lusitana o chinfalho de dois palmos e meio e no interior do paiz o varapau ferrado. Tiveram por excepção no Porto durante o governo da Junta armamento completo á caçadora e não me lembra já quantos machados por companhia destinados a servir no caso da cidade se ver forçada a seguir na sua defeza o exemplo de Saragoça. Só me consta que funccionassem uma vez Foi no dia 30 de junho de 1847.

“Roberto” –  Manuel Roussado (barão de Roussado) (1867)

A Inês Negra

Esta história teve lugar em 1388, no início do reinado de D. João I, em que se travou uma guerra contra Castela pela independência de Portugal.

Esta contenda, em que sobressaíram os feitos do Condestável Nuno Álvares Pereira e de muitos nobres portugueses, dividiu a aristocracia e o povo português, tomando muitas terras o partido de Castela.

Foi durante esta guerra civil que a Inês Negra, uma mulher do povo fiel à causa portuguesa, abandonou Melgaço quando esta cidade se pôs ao lado do rei de Castela.Quando D. João I decidiu reconquistar Melgaço, Inês Negra juntou-se ao seu exército, mas as duas facções nunca chegaram a defrontar-se.

A batalha travou-se entre Inês Negra e uma sua inimiga de longa data, a “Arrenegada”, que tinha optado por apoiar os castelhanos. A lenda diz que a “Arrenegada” desafiou Inês Negra do alto das muralhas, propondo que a contenda fosse resolvida entre ambas com o acordo do exército castelhano. D. João I assistiu espantado à resposta de Inês Negra que dizia aceitar o desafio.

Ambos os exércitos concordaram com este duelo e a Inês Negra, de espada na mão, defrontou a sua inimiga apoiada pelos gritos de incitamento dos homens de D. João I.

O silêncio instalou-se quando a “Arrenegada” fez saltar com um golpe a espada das mãos de Inês, mas esta tirou uma forquilha da mão de um camponês e fez-se à luta, procurando atingir a “Arrenegada” nas pernas. Sentindo-se em desvantagem, esta atirou fora a espada e pegou num varapau que quebrou com fúria nas costas de Inês.

Louca de fúria e de dor, Inês Negra largou a forquilha e atirou-se com unhas e dentes à sua oponente, rolando ambas no chão empoeirado. Um grito de dor gelou a assistência, que não conseguia perceber qual das duas vencera.

Foi então que a “Arrenegada” se levantou e fugiu para o castelo, tapando as nódoas e o sangue do rosto com as mãos.

Os castelhanos abandonaram Melgaço no dia seguinte e D. João I quis recompensar a heroína, mas esta respondeu que estava plenamente recompensada pela sova que tinha dado à sua inimiga.

Querem deslocalizar o pau de marmeleiro

É uma estátua de duas toneladas de bronze distribuídas por dois homens e um pau de marmeleiro, glorificando uma lenda que uma cidade fez sua. O seu tipo de justiça, com um varapau, está para Fafe como o chapéu está para Fernando Pessoa, é um pormenor, só isso, e até cai bem. A justiça de Fafe, lenda antiga, só corporizada em 1981 com a tal estátua que foi colocada nas traseiras do tribunal. Agora – é essa a notícia – o presidente da Câmara quer deslocalizar a estátua, não por razões económicas como acontece às fábricas, mas por incompatibilidade de vizinhança. A justiça pelas próprias mãos ficaria mal ao lado de um tribunal… Como se não vivêssemos num país com um cemitério chamado dos Prazeres e um aeroporto chamado Sá Carneiro. Nos 31 anos de vizinhança, nunca um pleito do tribunal de Fafe, mal influenciado pela estátua, saiu para as traseiras à bordoada, tal como os aviões não se puseram a despenhar no Porto ou os enterros a dançar em Campo de Ourique. Os nossos líderes, com mil desses falsos cuidados connosco, ofendem-nos a inteligência. E, no caso de Fafe, até tresleem. O Visconde de Moreira de Rei, usando o varapau, tal como contou o Barão de Espalha Brasas, cujo poema épico deu início à lenda, foi, afinal, um precursor da justiça moderna, proporcionada e pedagoga. Tendo sido provocado a duelo, não escolheu a espada ou a pistola, que são fatais, mas o pau, que não mata e, bem aplicado no lombo, educa.

Ferreira Fernandes – 6 de Setembro de 2012
in www.dn.pt

Poupe-se, que tem bom pulso!

António Francisco Barata, 1836-1910.

— Se o alfaiate aparecer, que castigo achas que se lhe deva aplicar?
— Trazes tu a escada celestial? perguntou Jorge Aires, antes de responder.
— Trago, sim.
— Pois, muito bem, O castigo que lhe quero aplicar é simples; há de subir pela escada…
— Queres enforca-lo? interrompeu Gonçalves Lobo.
— Não.
— Dizes sempre o que tencionas fazer.
— Logo o saberás, respondeu Aires.

Neste momento ouviram-se passos de quem descia a Couraça; e, quando o vento o consentia, alguns sons como de voz abafada.

— Ai vêm nossos irmãos, disse Jorge Aires.
— Parece-me que sim, respondeu Gonçalves Lobo.

E, para se certificar, assobiou. Não responderam ao assobio. Os dois estudantes admiraram isso, e a ideia de que não eram os Carquejeiros penetrou em suas mentes.

— Não são eles.
— Assim o parece.

Convém esperar e guardar silencio. E os dois, separando-se, cozeram-se com as paredes do arco, um de cada lado. O tropel de passos aproximava-se.

— Ó Aires! disse a meia voz Gonçalves Lobo.
— O que é?
— A que horas prometeu vir o Pescada?
— Ás dez.
— Então são eles. Estão para bater dez horas.
— Não são, não; porque se o foram teriam respondido ao teu assobio.
— Seja o que for. Eles não devem tardar.

Calaram-se. Já se começavam a divisar os sujeitos que vinham.

Caminhavam para a Ponte. Eram quatro: um, no meio de dois que o arrastavam á força, estrebuchava e soltava uns sons abafados e surdos, porque o quarto sujeito de traz dos três, tinha e apertava um lenço que servia de mordaça na boca do preso.

— Anda, maroto; lançaste me ao chafariz da Feira, pois ao rio te lançarei eu!

E o grupo ia passando.

— Ó Lobo, disse em voz baixa Jorge Aires; que será isto?
— Aos futricas! bradou com voz de stentor Gonçalves Lobo, respondendo assim a Jorge Aires.
— Já! disse este. E, armados de cajados que traziam, deram sobre os quatro.

O que sustinha a mordaça foi a terra à primeira pancada que lhe atirou à cabeça o estudante Jorge Aires.

— Coragem! amigos! bradou o preso logo que pôde falar, que outro não era senão José da Silva Coutinho.

Gonçalves Lobo repetia pancadas rijas no sujeito que ouvira falar debaixo do arco, e conhecera ser o alfaiate Peixoto.

À terceira cajadada João Peixoto largou o estudante Silva Coutinho, que se desembaraçou facilmente do outro que o agarrava, dando-lhe um valente murro no estômago ; e, correndo a Gonçalves Lobo, lançou-lhe as mãos ao pau, torceu-lho rapidamente e conseguiu tirar lho, mandando logo à cabeça dele uma pancada forte.

Lobo evitou a pancada na cabeça; mas com uma força bruta havia sido ela despedida! Não deu na cabeça de Lobo, mas batendo-lhe no braço esquerdo impossibilitou-o de qualquer movimento, pela dor enorme que lhe causou.

João Peixoto teria morto a Gonçalves Lobo se Jorge Aires não acudisse a aparar as pancadas tremendas do desesperado futrica.

José da Silva Coutinho lutava braço a braço com o outro sujeito que não conhecia, e que por ultimo o largou. E num chuveiro de murros que os dois se davam, ninguém podia ao certo dizer qual deles seria o vencedor.

O sujeito que primeiro fora a terra com a pancada de Jorge Aires, ou estava morto ou sem sentidos; Gonçalves Lobo, com um braço quebrado, assentara-se gemendo com dores enormes, e Francisco Jorge Aires batia-se fortemente com o alfaiate João Peixoto, redobrando um e outro perícia e destreza.

Um assobio prolongado se ouviu neste instante.

Aires sentiu-o, mas não pôde corresponder porque, se se distraísse um segundo, estava desarmado, e quem sabe o que seria?!…

Gonçalves Lobo, apesar das dores agudas que sentia, pôde ainda responder ao assobio.

Jorge folgou quando o ouviu ; e, ou fosse porque estimasse a aproximação de seus irmãos diabólicos, ou porque não quisesse aos olhos deles passar por fraco, ou menos destro no jogo do pau do que um futrica ignorante e bruto, começou a mandar ao alfaiate pancadas mais desconhecidas dele, certeiras e firmes.

João Peixoto foi-as aparando, até que perto de si viu três estudantes armados de varapaus. Então, ou fosse porque se amedrontasse, ou porque não soubesse defender-se já de Francisco Jorge Aires, deixou sair o pau das mãos, que voou até cair no rio, e entregou-se à descrição, desanimando completamente.

Os estudantes, que chegaram, correram ao futrica, e, te-lo-iam morto, se Jorge Aires não gritasse:

— Alto! amigos! Poupe-se, que tem bom pulso!

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“O Rancho da Carqueja” tentativa de romance histórico, baseado nos acontecimentos académicos do século dezoito (1864) – António Francisco Barata, 1836-1910