Histórias que ainda se contam

Pio Pinto de Almeida, pedreiro, natural de Marecos, Penafiel, um dia, há mais de cem anos, foi à festa de São Gonçalo, Amarante. Ao chegar, viu um homem a bater na sua mulher. Decidiu «meter a colher» e assestou duas bordoadas nas costas do biltre. Familiares e amigos do marido agressor tentaram vingar-se, mas o justiceiro Pio lá se foi defendendo, pois era um exímio lutador de pau. Entretanto o número de defensores do cobarde foi aumentando e valeu a Pio uma alma caridosa que o acolheu e o salvou de um linchamento da arruaça. Este homem que arriscou a vida para lutar contra uma injustiça era meu bisavô, o que muito me honra.

Américo A. Campos – 20 May 2015


 

Namoradas – Histórias do tio Joaquim

Publicada por luís rodrigues coelho Coelho à(s) sexta-feira, Janeiro 10, 2014

Quando eu era um rapaz novo, corria por todo o lado. Procurava as moças mais bonitas e as mais ricas.
Naquele tempo faziam-se serões quase todo o ano. Umas vezes a desfolhar as espigas de milho, outras a debulhar o milho à mão. Algumas a britar os pinhões ou a fazer retalhos de roupa velha.
Toda a roupa que já não servia era lavada. Depois ao serão era rasgada em tiras finas pelas raparigas. Os rapazes iam enrolando essas tiras de tecido numas bolas. Depois levavam-nas para a Tecedeira que fazia mantas.  As mantas que temos cá em casa foram todas feitas assim…Nunca se estragava nada e tudo tinha algum préstimo…

Nós íamos a todos os serões que eram uma forma de nos encontrarmos e podermos namorar um pouco. Cantava-se, ria-se com muita animação e éramos felizes. Novos e velhos conviviam ao redor da fogueira.
Nestas ocasiões, arranjavam-se namoricos com moças de outra aldeia, mas os rapazes em cada terra guardavam as suas moças. Cada um só podia namorar e casar na  sua terra…

Arranjaram-se grandes lutas entre rapazes de aldeias diferentes porque lhes queriam roubar as melhores moças.
Faziam-se “esperas”. Saltavam-nos à frente ou nós à frente dos outros e quase nem dava tempo para conversas.
– Vai namorar as moças da tua terra, as nossas já têm dono e não se dão aos cães…
Os cacetes começavam a dança. A conversa agora era dar ou defender-se
Só se viam paus no ar a cruzarem-se uns contra os outros. Ás vezes uma paulada mais forte rasava nas nossas costas ou até na cabeça, mas ninguém dava parte de fraco…A luta ia aumentando até que alguém cedia ou se punha ao fresco (fugia), levando os outros pelo mesmo caminho…fugiam a bom fugir…aquilo era ter pernas para andar…parecia que tinham fogo no rabo…Eh rapazes…tão cedo não se metem noutra…

Algumas vezes nas festas das Aldeias juntavam-se grupos rivais prontos para fazer a vingança…Nós já sabíamos da marosca e não íamos sozinhos. Quando se era apanhado de surpresa levavam uma boa coça…Ufa…
Com dezoito anos Já namorava uma moça de Amor. Uma rapariga muito bonita.
Eu era ainda um rapaz novo. Não tinha medo de ninguém, nem desconfiava que me quisessem bater. Já tinha alinhado nessas batalhas, mas tudo acabou sempre em bem. Cada um foi para seu lado e ficávamos amigos…

Uma certa noite, nem sei ao certo como aconteceu, esperaram-me ali em cima, à Cabaceira. Parece-me que estou a ver ainda as curvas fechadas e aquelas encostas altas e cheias de arvoredo. Havia sítios onde até de dia nós tínhamos receio de passar. Diziam que eram locais escolhidos pelos bandidos para fazerem os assaltos. As vítimas ficavam cercadas e não podiam fugir.
Os caminhos naquele tempo eram medonhos. Grandes silvados ou caminhos fundos no meio de grandes barreiras de terra.

Nesse tempo namorava-se apenas ao domingo à tarde e sempre na rua, junto da porta principal da casa da rapariga. Ao anoitecer, quando tocavam as três badaladas na torre da Igreja, as três Avé-Marias, a rapariga tinha de entrar para dentro de casa, para junto dos pais.
Havia muito respeito e ninguém se atrevia a desobedecer.
– Bem, dei-lhe as boas noites, marcamos encontro para o domingo seguinte, e … “ála”…meti-me ao caminho de regresso a casa.
Estava uma noite de breu…Nem as estrelas se viam no Céu…

Nesta altura já eu levava este pau comigo. A viagem era feita a coberto da noite e nunca sabíamos o que nos podia acontecer…
Vinha eu a subir a tal encosta, no meio daquele arvoredo, quando me salta à frente um desses rapazes, vizinho da rapariga.
– Alto lá…disse-me com ar ameaçador…Isto é só um aviso:
Se continuares a namorar aquela rapariga vamos ter de ajustar contas…Nem sabes de que terra és…

Eh rapazes…! Ui… Aquilo deu-me um nó no estômago. Parecia um tiro…Desandei o pau direito a ele, mas por sorte não lhe acertei. Ele estava sozinho e fugiu. Teria pensado que era homem para mim, mas enganou-se e muito bem enganado… Aquilo é que foram pernas para andar….Pareciam asas. Ele sumiu-se da minha vista mais rápido que um relâmpago.
Fiquei a conhecê-lo. Não me torna a fazer outra !

No próximo domingo, pensei eu, tenho de ir preparado. Ele e os amigos vão-me fazer-me “uma espera” para se vingarem…
Só tenho duas escolhas:
– Ou fico em casa ou então tenho de escolher outro caminho.
Ná…em casa é que eu não fico. Levo o pau comigo e depois há-de ser o que Deus quiser.
Depois das Avé Marias, voltámos a combinar a hora para a próxima semana. Ela foi para casa e eu meti-me ao caminho.
O tempo tinha mudado e a noite estava mais clara.
Ainda sou homem para dois ou três como ele, pensava eu, mas ao mesmo tempo ia caminhando sempre com “um olho atrás e outro à frente” não vá o diabo tecê-las…
“Desta feita” deixaram-me em paz…
Nos meses seguintes acabámos o namoro. Não nos entendemos e eu tinha de resolver a minha vida. Queria casar.

Nesta altura já andava de olho na tia. Ainda éramos parentes. Namorámos e casámos no ano seguinte. Depois fui para a tropa. Ela ficou sozinha com um filho e dois rapazes, meus irmãos mais novos, para cuidar. Tratou-os como filhos e soube ser uma boa mãe ensinando-os a trabalhar…
Fomos felizes. Era assim a vida e não foi nada fácil….

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O Pau – Histórias do tio Joaquim

-Publicada por Luís Rodrigues Coelho, terça-feira, Dezembro 31, 2013

Havia um cacete castanho, lustroso e cheio de pequenas verrugas arrumado num canto, atrás da porta grande da Sala. Era da altura de um homem ou um pouco mais alto.
O tio, que era o mais velho dos três rapazes, disse-nos que aquele pau esteve sempre ali. Era já do tempo dos seus pais.
Não sei se aquilo era uma arma de defesa ou de ataque.
Pensámos:
– Deve ser por causa dos ladrões…
As pessoas tinham de se defender e estas eram as suas armas.

– Os ladrões, continuou o tio, são maus. Muito, muito maus…Terríveis. Onde deitarem as unhas levam tudo. Alguns são capazes até de bater nas pessoas para lhes roubar ainda mais.
Era conveniente, naquele tempo, ter um pau assim – grosso e comprido. Cabia nas mãos de um adulto.
– Homem prevenido vale por dois…
Mais tarde os ladrões organizaram-se em quadrilhas. Grupos organizados com um cabecilha…
Eram ainda piores. Nem é bom pensar…

Conta-se que num certo dia, um lavrador foi com a mulher à feira vender uma junta de bois. Depois de fazerem o negócio, entregaram a junta de bois, receberam o dinheiro e regressaram a casa. Não quiseram fazer compras para não se demorarem. Tinham pressa de chegar a casa para esconder o dinheiro.

Escolhiam sítios muito difíceis de descobrir. Eram buracos no curral da burra ou por baixo do sobrado da casa, dentro de umas panelas de barro ou ainda nas paredes da casa.
Era lá que faziam o seu cofre para o dinheiro, o ouro e as libras… O avô tinha o seu cofre dentro de uma pia de pedra na adega. Dificilmente o descobriríamos…Um dia, pouco antes de morrer, levou-nos lá e mostrou-nos o seu segredo…

Os lavradores voltavam apressados e ao mesmo tempo cheios de medo,”miufa”, porque estas quadrilhas faziam cada vez mais roubos e tornavam-se mais violentos.
– Ai Senhor, que não nos aconteça nada de mal…Deus nos livre e guarde dos ladrões e malfeitores. Rezava a mulher.

Um pouco mais adiante, num sítio mais ermo, onde as matas são mais cerradas…foram atacados de surpresa por uma dessas quadrilhas. Dois saltaram-lhes à frente e os outros ficaram de atalaia, vigia.
– Alto lá, disseram eles com uma voz forte. Para cá o vosso dinheiro todo ou ficam já aqui estendidos no chão.
… Ou o dinheiro ou a vida…
– Por amor de Deus não nos façam mal, somos pobrezinhos, pedia a mulher, já lavada em lágrimas….

Imediatamente deitaram as unhas ao pescoço do lavrador e disseram:
– Este vai já entregar a alma a Deus… e dito isto, sacaram de uma faca muito grande  … vamos a ele…
– Ai o meu rico homem….gritava a mulher…Tenham piedade de nós…Homem dá-lhe o dinheiro, dá-lhe tudo. Ai que vida a nossa…! Valha-me Nossa Senhora dos Aflitos….

O lavrador bem que esperneava e se torcia todo para se safar, mas os outros que eram mais fortes e eram dois bem o seguraram e ele não conseguia libertar-se.
A mulher não lhe podia valer pois também lhe prenderam as mãos. Ela bem que gania e se sacudia mas nada….
Revistaram o homem até que encontraram as notas dobradas no fundo das calças, juntinho das suas partes mais íntimas…Com tanto medo de morrer o pobrezito já se tinha borrado todo. Os ladrões sacudiram as notas e levaram tudo.
Deixaram-nos mais mortos que vivos com tanta tareia.
As dores eram muitas. Por  pouco se salvaram…

– “Ai home” que vida a nossa …
– Tu estás bem Rosa…? Perguntou ele com muita dificuldade…
E lá se foram levantando do chão numa ladaínha de lamentos…
– Nestas alturas não aparece ninguém para nos valer…
Estes malandros sabem bem como fazer estas coisas e nós ficamos desgraçados… Lamentava-se a mulher.
– Ai, ai, ai…dizia o homem Dói-me muito a cabeça e as costas. Bateram-me tanto…. Estou todo partido…
– Ai “home”…deram-nos cabo do nosso canastro ! Também me levaram o meu rico cordão de ouro…que vida a minha.

Amanhã, cedinho, vamos procurar alguém que reze o responso a Santo António. Tenho fé que o cordão apareça…Pode ser que apareça algum dinheiro ainda !…
A Teresa dos Pinhais costuma fazer estas orações, sem se enganar. Quando se enganam está tudo perdido…Nunca mais aparece nada…
Dizem que se as coisas perdidas ou roubadas já passaram por águas correntes (rios ou ribeiros), ela tem de rezar com uma bilha de água à cabeça.
– Que vida a nossa …que tristeza… Quem tem sorte até os cães lhe põem ovos…mas quem a não tem é uma tristeza…respondeu-lhe o homem.

Aquele pau, atrás da porta tem muitas histórias. Tantas deu como defendeu…disse o tio. Quando comecei a namorar tive de me servir dele para me proteger. Havia uns tipos que se julgavam donos de todas as raparigas. Eles é que decidiam quem podia namorar com elas…mas isto já é outra história. Fica para outro dia…agora é melhor irem dormir…

Hoje os ladrões são outros. São “bem parecidos”. Usam gravata, têm carro e motorista. Estão no Governo e fazem os maiores roubos sem vergonha nem respeito…
Ainda ameaçam com coisas piores…A fome deles é a nossa desgraça…mas isto já não vai à paulada…
O povo tem de os denunciar e castigar com o voto…é uma arma poderosa. Eles bem que procuram enganar, mas já é tempo de conhecer as quadrilhas de malfeitores…

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Dia do Juízo

A verdade é que, em tempos antigos, sempre que nos Arcos se falava em que os soajeiros queriam descer à vila em atitude hostil, o susto não era pequeno. Lembro-me disso em criança.

Há alguns anos sucedeu porém, um facto que desenganou os arcoenses de que podiam medir as suas forças com estes destemidos serranos. Foi o caso que os soajeiros quiseram desafrontar-se de quaisquer agravos de romaria, feitos não sei por que frequentadores de feiras ou arraiais de outras freguesias do conselho. (Prozêllo, etc.) Levaram a sua a audácia a escolher para o despique um dia de feira dos Arcos, de modo que vieram em massa e, simulando um batalhão, subiram provocadoramente a calçada que na vila conduz ao elevado sitio, onde se faz a feira do gado e onde, portanto, se reúnem os puxadores de pau, os varredores de feiras, os mestres, enfim, na arte de rachar cabeças do próximo.

A autoridade administrativa, que, prevenida, foi parlamentar com os chefes da expedição, nada conseguiu!

Chegados ai, sem mais tir-te nem guar-te, iniciaram, com os seus toscos varapaus de cerquinho, um rodopio cego, a torto e a direito, sobre os surpreendidos lavradores e contratadores de gado, que na feira se encontravam. Mas não tardou que a impulsiva estratégia da arremetida tivesse o desfecho natural. Senhores de uma posição favorável e assomados pela ousadia dos soajeiros, todos os que tinham uma boa vara nas unhas, depois de se «cobrirem» dos primeiros «talhos», responderam-lhes com uma torrente de pancadaria tal, caindo de roldão sobre os soajeiros e acossando-os com os seus lodãos fortemente «argolados» que, dentro de breves minutos, ninguém na vila sabia o que fora feito dos arrogantes caceteiros, tamanha foi a estugada aflição com que sumiram pelas encruzilhadas e pelos milharais. Do prélio ficou um morto dos vencedores! Constava depois que ao desbarato não fora estranha a pedrada do mulherio. Na expressão minhota, foi um verdadeiro “dia do juízo” nos Arcos!

Noticia sumária acerca do Soajo – Feliz Alves Ribeiro

O homem dos cavalos

Morreu em 1973, com 60 anos e ainda era na altura uma das pessoas mais conhecidas da Castanheira.

Joaquim Igreja era o “homem dos cavalos”, assim conhecido por ter, desde solteiro, animais para reprodução, nomeadamente bois, cavalos e burros. 

O ti Igreja era conhecido pelo seu à-vontade mas também por um carácter forte, decidido e capaz de impor a sua ideia nem que fosse pela força. Aos domingos à tarde, os “barulhos” eram frequentes na Castanheira e o ti Igreja não escapava a estes rebuliços junto das tabernas. Com varapau e em cima do cavalo era de temer. Nas feiras era a mesma coisa. Às vezes por bairrismo a defender os da Castanheira, outras vezes por defender os mais fracos, envolvia-se em discussões onde não era chamado e então “havia molho”. António Igreja recorda um dia em que o seu pai voltou de cavalo à Castanheira após uma feira de Pínzio, em busca de reforços e após o repique dos sinos terá voltado a Pínzio para “varrer a feira”, já devidamente acompanhado por muita gente que se tinha juntado e recolhido pedras para atirar aos “inimigos”. Nessas ocasiões a auto-estima da aldeia subia em flecha. 

Joaquim Igreja respondeu 17 vezes em tribunal por pancada mas foi sempre absolvido, o que mostra que não eram questões sérias e premeditadas, sendo muitas vezes a sua actuação em defesa dos mais fracos ou após uma série de copos bem bebidos. 

-“Castanheira Jovem” – Associação da Juventude Activa da Castanheira Boletim Nº 31 – Agosto 2010. Artigo de Joaquim Martins Igreja 


Joaquim Monteiro Igreja é o primeiro de pé à direita.

Um “diabo” de varapau

Quem, vindo pela estrada a que hoje teremos de chamar “velha”, que ligava a Portelinha à Benfeita, tivesse atravessado a Dreia e transposto o ribeiro “de cima”, e deixasse à esquerda a “casa dos colhereiros” e, logo em seguida, na curva, as “alminhas” que convidavam o caminheiro a rezar pelos que penavam no Purgatório, entrava na pitoresca e tenebrosa “Barroca da Vinha”. Pitoresca porque a estrada marginava formoso soito de gigantescos castanheiros,cujas copas,de um verde claro e alegre, formavam fechado docel, que o Sol a custo rompia; tenebrosa porque o “Diabo”, segundo a tradição, escolhia aquele fresco e umbroso local para aparecer àqueles a quem queria tentar, ou meter medo. Raras seriam as pessoas que, de dia, atravessavam a “Barroca da Vinha” sem levarem o “Credo” na boca e a mão bem nervosamente apertada numa figa. E de noite… De noite, quem se atreveria a atravessar, sozinho, aqueles cinquenta ou sessenta metros de estrada?

Uma tarde, o Manuel “Maneta”, de regresso não sabemos de onde, demorara-se a conversar na Dreia, numa roda de amigos. Cavaqueava-se e bebia-se; “rodada” para por um, “rodada” oferecida por outro, e depois por um terceiro e um quarto, que não queria ficar de somenos. O Sol já havia desaparecido há muito e a noite começava de adensar-se.

– Manuel, são horas – disse alguém – olha que não há luar e a noite vai ser de breu. Daqui à Benfeita ainda é um bocado, e os caminhos estão maus.
– Ainda é cedo – respondeu o interpelado – e o escuro não me mete medo!
– Mas olha que pode aparecer-te o “Diabo” na “Barroca da Vinha” – insistiu o amigo, para pôr fim às “rodadas”.
– Pois até gostava que me aparecesse. Ao menos ia de companhia! – retorquiu o Manuel, com uma bela e sonora gargalhada.

A cavaqueira continuou ainda, mas a evocação do “Diabo” não deixou de impressionar os circunstantes, que, primeiro um, depois outro, foram indo para casa.

Às tantas, o “Maneta” despediu-se e, com uma bengalita de vareta de aço forrada de papel, que estava, então, na moda, meteu-se resolutamente ao caminho, assobiando. Desceu até à ribeira, subiu tornejando para a “casa dos colhereiros”, benzeu-se em frente às “alminhas” e entrou no túnel formado pelas copas dos castanheiros. A escuridão era ali completa, e profundo o silêncio da noite, só interrompido pelo estalar dos gravetos debaixo dos pés do viandante. Súbito, o “Maneta” ouviu uma voz, uma voz roufenha, medonha, pavorosa! Estacou, olhos dilatados! Ouvidos atentos, ansiosos! E a voz repetiu, arrastadamente:

– Ó Manuel, espera aí que eu também vou!

E, detrás de um castanheiro, que depois se ficou a chamar “do medo” ou “do Diabo”, surgiu um vulto branco, enorme, horrendo, a avançar para a estrada, brandindo um gigantesco e ameaçador varapau, prestes a deslombar o interpelado!

Nessa noite, o Manuel Martins chegou a casa muito mais cedo do que contava. Dir-se-ia que teve asas, ou que o seu anjo protector o ajudou a percorrer o resto do caminho! Porque o “Diabo” não foi, porque o “Diabo” ficou na “Barroca da Vinha”, pois não teve “pernas” para acompanhar o “Maneta” na corrida.

A verdade é que só muito tempo depois o “Maneta” acreditou que aquele vulto medonho, horrendo, alveiro, de voz cavernosa, escalafriante e varapau ameaçador, não fora senão o José Gomes que, cortando caminho pelos matos, lhe saíra à frente naquele preparo, disposto a abater-lhe a prosápia com duas boas arrochadas.

Nota: O soito existente na “Barroca da Vinha” desapareceu totalmente com a “malina” que em toda a região deu nos castanheiros. O local está hoje completamente diferente do que era quando ocorreu a aventura, verdadeira, que fica descrita, não só pela falta dos castanheiros que ensombravam o caminho e o tornavam tétrico de noite, mas também porque sobre este veio a construir-se a “estrada de macadame”.

As “alminhas”, porém, ainda estão no mesmo local, reparadas dos insultos do tempo e dos malefícios dos homens, graças ao generoso interesse e patrocínio do Sr.António Nunes Leitão.

José Gomes, o “Diabo” que saiu ao caminho do “Maneta”, era um homem alto, forte e valente, alfaiate de seu ofício que deixou boa fama de si.

Mário Mathias
A Comarca de Arganil – Agosto/1954
http://benfeita.net/histor15.htm

Justiça na Senhora do Viso

O tempo da justiça na Senhora do Viso, decidida ao jogo do pau, no dia 8 de Setembro de cada ano!” *1

Nossa Senhora do Viso
-Festa da Senhora do Viso

A capela da Senhora do Viso está construída na demarcação das freguesias de Caçarilhe e Rêgo.

A sua localização é magnífica. Do seu recinto observam-se em todo o seu redor, belas paisagens de Celorico de basto e doutros concelhos.
(…)
Segundo a lenda que vem sendo contada, de geração em geração, a Senhora do Viso é responsável pelo nosso juízo.

Ouvi muitas vezes as pessoas idosas e a minha mãe dizerem: Deixa-te de toléria. Pede à Senhora do Viso que te dê juízo.

Foi sempre uma festa muito frequentada por gente de todas as idades, das freguesias de Celorico de Basto e dos concelhos vizinhos. Os romeiros vinham ali satisfazer variadas promessas. Dar a volta ao redor da capela de joelhos, novenas, que era dar nove voltas ao redor da capela.
(…)
Aparecia naquela festa o primeiro vinho doce. Era transportado para o recinto em pipas colocadas em carros de vacas, onde era vendido em tigelas e canecas.
(…)
A ordem era assegurada pela Guarda Nacional Republicana, que tinha grandes dificuldades em manter o recinto da festa sossegado.

A certa altura perdia mesmo o controle e limitava-se a proteger a capelinha de qualquer profanação ou estragos.

Naquela data era na festa da Senhora do Viso, que o povo de São Bartolomeu fazia os ajustes de contas, que se iam acumulando durante o ano. Roubo da namorada, tornas de água, negócios, falta de cumprimento da palavra, e outras pulhices.

No acto da infracção, o lesado lançava a ameaça. No Viso pagas.

Todos os homens e moços novos que iam à festa, iam munidos cada um com a sua racha. Pelo caminho para a festa, aqueles que iam já com intenções de saldar contas, por vezes cruzavam-se com os “devedores” e seguiam todos juntos na grande galhofa fingindo serem todos amigos.

No recinto iam gozando a festa e saboreando os petiscos acompanhados por uns bons cartilhos de vinho.

Depois de bem bebidos ao fim da tarde começavam as provocações. Os provocadores de tigela na mão cheia de vinho dirigiam-se aqueles que pretendiam aquecer o lombo e ofereciam-lhe o vinho. Como eles não aceitavam, os desordeiros esbarravam-lhe com a tigela cheia de vinho nas bentas. Outras vezes ao passar davam-lhe um empurrão.

As rachas começavam a trabalhar e o povo fugia para não ser atingido.

A guarda como não conseguia pôr termo à desordem sacudia-os para fora da festa.

Mas o jogo do pau continuava pelos caminhos abaixo, e quando algum tropeçava nas pedras, perdia o equilíbrio do jogo e era-lhe fatal, levava umas boas estadulhadas até ficar desacordado.

Encostavam-no a uma borda e ele ficava a ali a sonhar com coisas bonitas, até desacordar ou aparecer algum caminhante que o socorresse.

Porém, se o ferido não acordasse mais e ficasse a dormir eternamente, para o lembrar era colocada naquele sitio uma cruz ou umas alminhas.

Na Senhora do Viso, não dizia a letra com a careta, porque quando começavam a bater, malhavam sem dó nem piedade. Tinham pouco juízo.

Ambrósio Lopes Vaz
_________________
1 – Luís Castro Leal

Lições de varapau, em vez de trabalho.

No dito grupo figuravam alguns que, devido aos aturados exercícios bem como ao seu jeito natural, atingiram tal grau de perfeição que chegaram a gozar de grande fama. E de proveito também. Foi o sucedido com aquele que, em terras alentejanas para onde fora, em grupo, na maré da ceifa, teve a sorte de a sua fama de jogador de pau subir aos ouvidos do patrão, por tal sinal, muito interessado em aprender o dito jogo.

Feita uma ligeira prova, que agradou em cheio, viu-se contratado para o ensino das suas reais habilidades técnicas e das manhas, que faziam parte do seu estilo. Da contrata fazia parte o direito a receber a jorna dos ceifeiros em troca das “lições” que o patrão desejasse, dentro das horas e dias de trabalho braçal.

Em fim de contas, tão agradado ficou o “aluno” como o “professor” que o tratado continuou em vigor para o ano seguinte, nas mesmas condições!

http://alqueidao.wordpress.com/2012/07/26/o-jogo-do-pau/

Aldeias desavindas

Outro episódio que a minha memória ainda não desvaneceu, é o seguinte: Segundo consta, devido a um namoro mal sucedido, os rapazes de uma freguesia contígua, receavam vir aos bailes de Vilgateira, pelo que deixaram de os frequentar até que um dia e por que o período já ia longo, um grupo resolveu pôr cobro à situação e acompanhados dos seus varapaus, apresentaram-se no baile onde dançaram até altas horas, como era hábito, decorrendo tudo dentro da normalidade.

Quando o baile estava prestes a terminar, os rapazes da aldeia que entretanto se tinham organizado, desapareceram como por encanto.

O grupo “invasor” ao regressar à sua aldeia foi surpreendido pelos “ofendidos”, tendo-se desenrolado grande contenda, com enorme alarido e as consequências esperadas.

Consta-me que se as relações eram más, ficaram muito piores e durante muitos anos não houve casamentos entre habitantes das duas aldeias.

Na minha juventude e em férias, desloquei-me algumas vezes a tal aldeia, a pé, com um ou dois amigos e se não sentíamos hostilidade, havia pelo menos desconfiança.

Anos depois, tudo estava diferente e hoje, poucos se lembrarão destes desaguisados.

-José Varzeano

PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 9 DE FEVEREIRO DE 2001

A sangue frio

Numa ocasião, por volta de 1926, um dos homens mais temidos pelo manejo do PAU, foi rodeado por opositores que só assim o conseguiram vencer e mesmo nessa situação, não era fácil. O médico encontrava-se em Lisboa onde se tinha deslocado acompanhando um doente, naquele tempo era assim. Chegado o sinistrado, de cabeça aberta e informado da ausência do clínico, não arredou pé solicitando à filha do médico que normalmente o auxiliava nestas situações, que pusesse mãos à obra. Meia hesitante, acaba por aceder e inicia o trabalho dentro das suas limitações.

O valente varzeense, mordendo num lenço para aguentar a dor, e dando coragem à pseudo-enfermeira, ia dizendo:- cosa, cosa … e os pontos lá iam saindo ! Entretanto, teve de largar o doente para acudir ao namorado que tinha desmaiado ao assistir àquele trabalho!

Florindo da Costa Paulo, o varzeense de que estamos falando e que conheci relativamente bem, era um homem de rija têmpera. De figura meã, mas bem entroncado, as suas mãos calejadas, funcionavam como tenazes. Tez queimada pelo sol, na face arredondada saltavam grandes e vivos olhos e chamavam a atenção, a forte barba, em forma de matacões.

Vestindo à homem do “Bairro”, nunca dispensou o varapau, que o acompanhava para todo o lado, mesmo no ocaso da vida.

-José Varzeano

PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 9 DE FEVEREIRO DE 2001

Espadão contra 5 paus

Romance: “O Génio do Mal”  Volumes 3 – 4

Arnaldo Gama – 1857

— Pois então cá por mim não tenho mêdo — disse o visconde — mande preparar para partirmos.

— Umph !— rosnou Manuel Gomes, e desceu. Dez minutos depois pozeram-se a caminho. Até ao largo de Souto Redondo, Manuel Gomes, que se pozera de batedor na frente da carruagem, não viu nada que o inquietasse ; ao entrar porém no caminho que d’ahi leva a S. João da Madeira sentiu um silvo agudissimo, viu chamejar de repente o espaço, ouviu a descarga de cinco tiros, e logo o silvo das balas que passaram junto d’elle, e outras que bateram na sege.

O cavallo baqueou.

— Senhor visconde! — gritou Manuel Gomes.

— Não me acertaram, amigo – gritou o velho visconde, lançando-se fóra da carruagem com duas pistolas na mão.

Manuel Gomes viu logo correr em direcção a elles cinco homens armados de varapaus. N’um abrir e fechar de olhos desfechou a clavina sobre elles, e arrancando do espadão que trazia, deu um salto para diante do visconde, que se pozera encostado a uma parede com as duas pistolas, armadas nas mãos.

Os cinco assassinos chegaram n’um momento a elles. Manuel fez um rodizio, e conseguiu fazê-los recuar. Travou-se então uma lucta desigual e de morte. A espada de Manuel brilhava como um relampago, ora em rodizio, ora procurando de fio ou de ponta o corpo dos contrarios. Mas estes armados de compridos varapaus esquivavam facilmente o corpo, e o velho soldado começava já a sentir-se cançado com os esforços sobrenaturaes que se via obrigado a fazer. N’um só momento que tomou de descanço um dos varapaus cahiu-lhe em cheio sobre a cabeça. O velho soldado cambaleou. O visconde porém conservava todo o sangue frio; apontou uma das pistolas, e desfechou. Um dos homens cahiu. A impressão que esta morte causou nos assassinos, foi preciosa para Manuel Gomes, que tomou fôlego, e conseguiu reconquistar a primitiva destreza. Mas a lucta era desegual de mais para durar muito tempo indecisa ; Manuel Gomes começava a fraquear de novo, o visconde tinha desfechado sem exito a segunda pistola… tudo estava perdido.

Uma circumstancia porém inesperada veio fazer pender a Victoria para o lado dos quasi vencidos. Um caminhante que subia n’este momento a estrada do lado de S. João da Madeira, mal viu o combate, metteu o cavallo a galope para elle. Infelizmente o visconde que tinha carregado novamente as pistolas, desfechou terceiro tiro, e a bala foi bater na cabeça do cavallo do recem-chegado. Este veio portanto a terra; mas não desanimou ; desembaraçou-se do cavallo, e correu com uma espada na mão para o lado de Manuel Gomes.

Este ao vêr-se soccorrido, tomou alma.

— A elles, camarada — gritou o velho soldado. A resposta do recem-chegado foi um golpe de tal jaez sobre, o craneo de um dos bandidos, que lh’o abriu até os dentes. Manuel Gomes correspondia ao mesmo tempo a esta cortezia, talhando com um golpe de soslaio a cara de um salteador, que se tinha desviado com mais tento, mas ainda assim não tanto a tempo, que não apanhasse no rosto todo o rigor de um gilvaz.

N’esta occasião assomou na estrada um outro cavalleiro.

— Narcizo ! — gritou o que tinha chegado primeiro.

Os bandidos lançaram-se então a fugir, e aquelle a quem tinham chamado Narcizo partiu á brida em perseguição d’elles.

Ainda elle não tinha tido tempo de chegar da perseguição em que se empenhava, e o visconde mal podéra ainda serenar de modo que podesse agradecer ao seu salvador