Jogo da cruz italiano.

Deixo aqui mais uma nota a revelar a ancestralidade do que chamamos de Jogo do Norte que ainda hoje é praticado por todo o pais, nas cidades e em várias aldeias. Desta vez do século XVII, em Itália, com o Montante, ou Spadone no original, uma espada que era aproximadamente do comprimento de um varapau.

alfieri-spadone

COMO SE DEVE NUM LUGAR ESPAÇOSO fazer as três cruzes do Montante – Cap. IX

As presentes lições são todas provenientes de ocasiões verdadeiras em que por questões, na sua maioria surgidas a sangue quente, somos levados ao modo de a ter de fazer as três cruzes, para usá-las em situações em que se seja atacado por várias pessoas nas praças ou ruas espaçosas, e para se fazer isto se requer muito juízo, embora acompanhado de resolução e habilidade, como mostrado na Figura anterior.

A primeira cruz divide-se em dois “golpes oblíquos da direita para a esquerda”, que são acompanhados com o pé direito girando o corpo e o montante em rotação, e cada um dos golpes fará o seu próprio movimento, tendo o pé esquerdo firmemente no chão, e o outro, que caminha duas vezes com o “golpe obliquo”, e em seguida firma-se o pé direito e começa-se com o pé esquerdo juntamente com dois “cortes da esquerda para a direita”, e findo os dois golpes recomeça-se como antes, com o pé direito, e passa-se para o flanco direito, executando-se os mesmos dois “cortes da direita para a esquerda”, e findo se firma o pé direito, e o esquerdo para o lado esquerdo, e far-se-ão os dois “cortes da esquerda para a direita” e em seguida se retorna ao lugar onde se começou.

A segunda cruz far-se-á com “três golpes oblíquos da direita para a esquerda”, e com três “cortes da esquerda para a direita”, os “golpes da direita para a esquerda” sendo acompanhados com o pé direito, e os “cortes da esquerda para a direita” com o pé esquerdo, girando-se três vezes o corpo, e com o Montante, mas mantendo-se a sobredita ordem.

A terceira cruz far-se-á com quatro “golpes oblíquos”, e também com “cortes da esquerda para a direita”, com quatro repetições de cada lado, uma para diante, outra para trás, e de igual forma para o lado direito e esquerdo, observando-se a regra que havíamos demonstrado com o já referido discurso.

“Lo Spadone (O Montante)” de Francesco F. Alfieri – 1653 Tradução de Filipe Martins

– Nota: Por uma questão de facilidade, adaptei um pouco o texto, substitui também os termos italianos, pela descrição fornecida no mesmo documento pelo tradutor, no glossário. Creio que assim fique mais legível para quem só joga ao pau e não está dentro dos termos originais. Para um estudo mais aprofundado aconselho o texto original acima ligado.

Foi publicado finalmente uma versão do manual de esgrima de Luis Godinho de 1599. Este trabalho, na minha opinião é o que mais semelhanças apresenta ao jogo do pau português, na vertente de espada a duas mãos, tendo descrições detalhadas de encadeamentos contra dois ou
mais adversários, geralmente vindos de trás e diante, exatamente como se
faz no jogo do norte.

Variando desde situações, como em ruas muito apertadas, até estando cercado em campo aberto. Sendo assim, não uma mera
curiosidade ou uma coincidência de um ou outro paragrafo, mas uma serie
de elementos pensados e construidos para um programa de esgrima em
inferioridade numérica bastante completo, como no caso do jogo do pau
português, e que se vê em tão poucas outras artes de combate, quer
antigas quer modernas.

Existem certamente muitos outros manuais de esgrima portugueses,
espanhóis e por todo o mundo, mais recentes, mas este é dos poucos que
tem uma secção tão focada no combate em inferioridade numérica, prática
que foi votada ao esquecimento em trabalhos mais recentes de esgrima,
mas que não foi esquecida por quem necessitava dela para se defender, a
varapau.

http://www.ageaeditora.com/
And… finally! After a huge delay, we are proud to present Domingo Luis Godinho’s «Arte de Esgrima», the only known complete book on the
«old school» iberian swordplay, which
was so thoroughly wiped out by the emergent Verdadeira Destreza that
this text is one of the few sources that remained.

The book is 275 pages long, of which about 230 comprise the original
text, enhanced with an introduction, context, annalysis and
transcription notes.  The original text itself delivers
instructions on single (rapier) sword, sword and rotella, sword and
buckler, twin swords, sword and dagger, sword and cape, and the longest
known text on the iberian montante.

Godinho originally wrote the
book in a rough spanish ladden with portuguese expressions and
mannerisms. We have normalized the text to modern spanish, expecting to
make is thus more accessible. A must for researchers of iberian fencing traditions!

mindhost:

AGEA Editora are in the process of publishing the “Arte de Esgrima” by  Domingo Luis Godinho, one of the few complete sources of esgrima vulgar or esgrima común (vulgar or common fencing), the Iberian swordplay that was replaced by La Verdadera Destreza.

The transcription and translation work was carried by Manuel Valle Ortiz and Tim Rivera, aided by Jaime Girona, Steve Hick and Eric Myers.

A espada a duas mãos – A forma como é utilizada atualmente, com uma guarda com um comprimento de quatro mãos ou mais, é mais adequada, não tanto ao combate um contra um, mas, pela sua habilidade, como um galeão cercado de galés, por si só, a opor-se a várias outras espadas ou diferentes armas. (…) é comum o seu uso em cidades, de dia ou de noite, sempre que um possa ser atacado por vários. Devido ao seu peso, que requer grande força, é utilizada pelos mais fortes de braço e de coração. Estes homens, vendo-se a ter que defrontar vários outros, por segurança e para aterrorizarem os seus adversários com a fúria da sua arma, fazem ataques com longos cortes, trazendo a espada a fazer um circulo completo, ora colocando o peso sobre um pé ora sobre outro, sem se preocuparem de todo em fazer pontuadas, pois segundo a sua opinião, os ataques de ponta apenas afetam um único homem, enquanto um corte, consegue lidar com vários.

Giocomo DiGrassi 1570 (via thescholarsruminations)

[vimeo 20371954 w=500 h=375]

Neste vídeo, aos 22:10, Matt Galas apresenta-nos a sua interpretação de duas regras para montante, escritas por autores Ibéricos por volta dos séculos XVI e XVII. Estas duas regras são especificas para a situação de combate em interioridade numérica, estando cercado, primeiro numa rua apertada onde só se conseguem fazer pontuadas, e segundo, numa rua mais larga onde já se conseguem fazer ataques em rotação.

No jogo do pau português, a prática de combate em inferioridade numérica é bastante trabalhada e o desenvolvimento do jogador vai muito além da prática de formas repetitivas. No entanto, este tipo de formas, simples e simétricas, que se podem repetir indefinidamente são a base que se tem que ter para se poder progredir. Como nos demonstram vários autores, já eram praticadas à vários séculos, e preservaram-se em vários grupos de jogo do pau tradicional, alguns deles que ainda os podemos ver quer no interior no pais quer nas grandes cidades.

4 Séculos, 4 autores, 4 soluções para combate numa rua estreita

Apresento aqui, por ordem cronológica, quatro diferentes autores de manuais/documentos técnicos de esgrima, que nos apresentam quatro soluções diferentes para uma situação muito particular, a de combater numa rua ou caminho estreito, com uma arma de cerca de metro e meio de comprimento, estando cercado pelos dois lados. Vamos ver o que estes autores de séculos diferentes nos dizem:

(Nota: textos adaptados a um português mais atual)


1- “Arte de Esgrima” Domingo Luís Godinho – 1599

“Cercado numa rua meio estreita:
Se estiveres cercado numa rua em que se possam dar e jogar talhos* e reveses*, com adversários por detrás e pela frente, segurarás o montante com a mão direita junto à guarda e com a esquerda junto ao pomo, virando os lados para os adversários, com as costas viradas para uma das paredes. Jogarás aos do lado direito um talho, metendo o pé direito a esse mesmo lado, e esse talho será armado pelo ar, a cortar de cima para baixo(…). De maneira que jogarás um talho como se diz, e não parará até que caia em pontuada, com as unhas para cima, aos que estão do lado esquerdo, e juntamente meterás o pé que havias metido ao lado direito, ao lado esquerdo, do lado do outro, de maneira que o corpo fique voltado com as costas para a outra parede. O meter do pé , talho, a volta e a pontuada armada, tudo deve ser um tempo e logo voltarás de revez aos do mesmo lado direito com o qual irá armado, por cima da cabeça como o talho, e acabará com a pontuada, unhas para baixo, aos do lado esquerdo(…) E com os passos por cima do pé esquerdo e direito, irás continuando a batalha tanto quanto for necessário.”


2 -“Memorial da Prática do Montante” Diogo Gomes de Figueiredo – 1651

“Serve esta regra para brigar em rua estreita, Dispõem se dando um talho debaixo para cima metendo diante o pé direito, e logo deixando cair o montante pela mesma parte direita se dará por ela um alta-baixo, para vir a situar uma estocada com a maçã do montante no ombro direito que se dará metendo o pé direito, e começar-se-á de novo a regra com o rosto para a outra parte, com os mesmos golpes até tornar a virar se for necessário.”


3 -“A arte do jogo do pau” Joaquim António Ferreira – 1886
“quando eu for por um caminho estreito e me saia um inimigo pela frente e outro pela retaguarda, devo vigiar um passo, coberto com o pau; assim que eu apare a pancada, devo largar a mão de traz, vir com a perna de traz à frente, deitar a mão ao pau do inimigo e dar-lhe com a ponta do meu; em seguida devo aparar a pancada do inimigo da frente e dar-lhe uma pontuada.”

4 -“Programa técnico de Esgrima Lusitana – Varapau” Nuno Russo – 2012
“Técnica da quelha:
1. Entrada a avançar a perna esquerda com meio passo na direção do adversário atrás varrendo com pancada arrepiada pela esquerda e ataca com pancada de alto a baixo ao finalizar o passo.
Se necessário fazer a varrimenta com a arrepiada a avançar 1 passo completo e crescer no ataque de alto a baixo.
2. Igual ao procedimento anterior para o adversário oposto.
Nota: Usadas em espaços estreitos (Quelhas). A pancada arrepiada tanto pode ser executada como defesa ou ataque”


Como podemos ver, os 4 autores utilizam sequencias de ataques ligeiramente diferentes, com combinações de ataques e/ou pontuadas, sendo as mais semelhantes, as sequencias de ataque de Figueiredo(2) e de Nuno Russo(4), ambos executam uma arrepiada (um ataque de baixo para cima) seguido de um rebate(um ataque de cima para baixo/vertical).

No entanto, mais importante do que a sequencia de ataques utilizado, é um aspeto que se mantém em todos eles, e este é a tática de gestão do espaço, pressionando um dos lados com ataques e deslocamento nessa direção, ao mesmo tempo afastando-se do adversário do outro lado. Voltando-se de seguida ao outro lado para criar a mesma situação, tentando sempre, enquanto possível e necessário, manter os adversários afastados.

Este principio não é só respeitado por estes autores na situação especifica de combate numa rua apertada, mas é uma constante nas dezenas de regras/formas presentes nos quatro documentos aqui apresentados, em que os jogadores estão cercados de dois lados.

– Frederico Martins

—/—
*Os investigadores que descobriram e transcreveram os documentos de Montante dizem-nos que o talho é um ataque pela direita, e o revez um ataque pela esquerda, que pode ser enviesado ou arrepiado.

Links:
Algumas regras de Godinho: http://www.spanishsword.org/translations

“Arte de esgrima” de Luis Godinho, 1599, foi recentemente publicada em http://www.ageaeditora.com

“Memorial da pratica do montante” completo, em português e traduzido para inglês:

“arte do jogo do pau”: http://www.lulu.com/shop/joaquim-ant%C3%B3nio-ferreira/a-arte-do-jogo-do-pau/ebook/product-21605137.html

Sobre mestre Nuno Russo, onde Praticar etc: http://www.esgrimalusitana.pt

Cercado, numa praça, campo ou rua.

Regra de combate em inferioridade numérica, em manual de esgrima do século XVI de um autor natural de Santarém.

Bastante similar ao que muitos grupos de jogo do pau fazem, na pratica do jogo do meio.

 “Arte de Esgrima”, Domingo Luís Godinho – 1599

“10ª Regra – Cercado, numa praça, campo ou rua.

É preciso ter muita agudeza, agilidade e um grande brio, quando numa batalha nos encontramos cercados de adversários.

Logo, celeremente segure o montante*1 pela forma da 3ª Regra*2, e, estando no meio deles, com os joelhos dobrados, a cabeça direita, fixado no pé esquerdo, corte um talho*3. Seguindo com o pé direito, corte outro talho, de forma a ir andando de lado, ora sobre o pé esquerdo, ora sobre o pé direito, e vá dando talhos em roda viva, cingindo todo o corpo em roda com o montante. Dá-se a cada passo um talho, que poderão ser até três ou quatro, mas que não devem passar de cinco, pelo perigo que há em desfalecer a cabeça. Acabados estes passos, dados com talhos, volta-se para o lado em que se começou, com outros passos, desta vez dando revezes*4. Da mesma forma que os talhos, dá-se um revés em cada passo do pé, rodando todo o corpo com o revés.

É de notar que quando se segue rodando, com os ditos golpes, os pés deverão ser colocados com segurança, e mais, devem ser colocados direitos, estando sempre um ou outro fixo, e andando com o corpo sempre muito direito. Com a cara, ora olhando para um lado, ora para o outro. E desta forma, ora com passos de talhos, ora de revezes, a um lado e a outro, se dará tantos passos enquanto dure a batalha.

Adverte-se, que se se estiver cercado em campo aberto, os passos não devem ser dados sempre ao mesmo lado, volta-se ao sitio onde se começou, mas continuando a dar passos, ora a um lado ora a outro, fazendo todo o circuito numa roda.

Se for o caso de se estar numa rua larga, neste caso devem-se dar passos a um lado e ao outro, e é de advertir que não devem haver pontuadas.

Caso haja necessidade de romper o esquadrão inimigo que nos cercou, dever-se-á carregar, com passos, sobre a parte onde se vir maior fraqueza. E aproximando-se com um brado para fora, juntamente dar-se-á uma ponta com as unhas para cima, um grande salto em roda, e no fim da ponta, um talho e um revés. Estando de fora, pode-se aproveitar para fazer a 9ª Regra.

Como aviso, quando se está cercado, deve-se sempre carregar ao lado onde os adversários tiverem mais força.”

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1- Espada grande, que se segura a duas mãos, geralmente com um pouco mais de metro e meio.
2- Guarda alta do lado direito da cabeça, com a ponta para trás.
3- Pancada enviesada pela direita.
4- Pancadas enviesadas pela esquerda.

Texto adaptado para português actual.

Para saber mais sobre o autor e a esgrima Ibérica antiga, consultar http://www.spanishsword.org

“Arte de Esgrima” – Luís Godinho, 1599 – Editado recentemente por: http://www.ageaeditora.com/

1 de Dezembro – A restauração e a esgrima em Portugal

A 1 de Dezembro celebra-se a Restauração da Independência de Portugal que, em 1640, pôs fim à dinastia espanhola neste país.

No contexto da esgrima na península Ibérica, desde 1587 que Don Jerónimo de Carranza, com a sua obra “Filosofía de las Armas”, conseguiu criar uma nova forma de praticar a esgrima, intitulada “La Verdadera Deztreza”, tratado que se impôs e fez esquecer tudo o que havia antes, considerando a esgrima do passado como “antiga” ou “vulgar”. Esta nova esgrima dedicava-se quase exclusivamente a espadas manejadas a uma mão, um processo que estava já a acontecer por toda a Europa.

No entanto, não lhe tirando o mérito, fez provavelmente esquecer um tipo de esgrima mais antiga, com armas a duas mãos e que tratava de situações diferentes do duelo um contra um.

Em 1651, Dom Diogo Gomes de Figueiredo, General de Artilharia português e mestre de esgrima, escreveu um manual de esgrima com espadas a duas mãos (o montante) que, calcula-se, tentava um pouco reviver essa esgrima mais antiga, olvidada pela obra e expansão da esgrima protelada pelo mestre espanhol. Dom Diogo Gomes de Figueiredo não só bem conhecia a Verdadera Destreza, pois também era mestre de esgrima, como também a antiga esgrima, com armas a duas mãos, e outras situações que tratava esta esgrima vulgar. E foi sobre essa esgrima já no seu tempo a cair na obscuridade, que decidiu tratar no seu manual.

As situações de combate a que se referiu são as de combate em inferioridade numérica. Como exemplo deixo aqui algumas situações referidas no manual de Dom Diogo:

“He esta regra para brigar com gente por detraz e por diante (…)”

“Serve esta regra para brigar em hua rua larga com gente por detras o por diante (…)”

“Serve esta regra para deter gente em hua rua e impeder que não passe de hua parte para a outra.(…)”

Estas são as situações tratadas também, e muito extensivamente, no jogo do pau português, no chamado jogo do norte, que retrata o combate em inferioridade numérica, estando geralmente cercado de adversários. E este é também o tema do primeiro manual verdadeiramente de jogo do pau de 1886.

Assim, Dom Diogo Gomes de Figueiredo, movido provavelmente pelo renascer de uma nação, reflecte uma quase perdida arte de combate. Este seu trabalho não chegou infelizmente a ser publicado, e a esgrima de espada evoluiu inevitavelmente para a que conhecemos hoje, mas as situações tratadas por este autor sobreviveram na esgrima do varapau sendo praticado até aos dias de hoje, uma prática quase esquecida em outros tipos de esgrima, seja europeia ou de outras partes do mundo.

Outros autores, mas muito poucos, trataram deste tipo de esgrima a duas mãos, contra vários adversários, sendo esta obra um elemento essencial entre não mais que duas ou três outras, que nos permite perceber que a prática actual do jogo do pau não foi uma invenção recente, dos últimos 2 séculos, sendo já uma prática comum muito antes de termos conhecimento do jogo do pau como é conhecido na literatura desde o século XIX.

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Memorial Da Prattica do Montante Que inclue dezaseis regras simples, e dezaseis compostas Dado em Alcantara Ao Serenissimo Principe Dom Theodozio q. Ds. G. de Pello Mestre de Campo Diogo Gomes de Figueyredo, seu Mestre Na ciencia das Armas Em 10 de Mayo de 1651

Do valor Militar

João de Carvalho, em tempo delRey D. João III, vendo perdida a Praça se pôs só com um montante nas mãos a defender aos mouros a entrada em uma torre; e investindo-o muitos, matou trinta ele só, e os outros vendo-o rodeado de mortos, se desviavam de medo, até que unidos mais, o jarretarão. Pôs ele animosamente os joelhos em terra, e assim pelejava de modo, que os apartava a todos, até que todos de longe lhe arrojarão tantos dardos, que morreu com admiração universal de valor tão grande.

Mereceu eterna memória na lira do Virgilio português em umas estâncias, que restaurou seu grande Comentador Manuel de Faria, e as refere sobre a est. 72 o canto 10 da Lusiada pag. 419. e nos Comentos da Egloga I. est. 7. pag. 167.

Vês o grande Carvalho ali cercado
De inimigos, como touro em duro corro:
De trinta Mouros mortos rodeado,
Revolvendo o montante, diz: «Pois morro,
Celebrem mortos minha morte escura,
E façam-me de mortos sepultura.
Ambas pernas quebradas, que passando
Hum tiro, espedaçado lhas havia.
Dos joelhos, e braços se ajudando,
Com nunca visto esforço e valentia:
Em torno pelo campo retirando,
Vai a Agarena, dura companhia,
Que com dardos e setas, que tiravam,
De longe dar-lhe a morte procuravam. 

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“Mappa de Portugal Antigo e Moderno” – João Bautista de Castro – (1763)
Luís de Camões – (1524 -1580)
 

Espadão contra 5 paus

Romance: “O Génio do Mal”  Volumes 3 – 4

Arnaldo Gama – 1857

— Pois então cá por mim não tenho mêdo — disse o visconde — mande preparar para partirmos.

— Umph !— rosnou Manuel Gomes, e desceu. Dez minutos depois pozeram-se a caminho. Até ao largo de Souto Redondo, Manuel Gomes, que se pozera de batedor na frente da carruagem, não viu nada que o inquietasse ; ao entrar porém no caminho que d’ahi leva a S. João da Madeira sentiu um silvo agudissimo, viu chamejar de repente o espaço, ouviu a descarga de cinco tiros, e logo o silvo das balas que passaram junto d’elle, e outras que bateram na sege.

O cavallo baqueou.

— Senhor visconde! — gritou Manuel Gomes.

— Não me acertaram, amigo – gritou o velho visconde, lançando-se fóra da carruagem com duas pistolas na mão.

Manuel Gomes viu logo correr em direcção a elles cinco homens armados de varapaus. N’um abrir e fechar de olhos desfechou a clavina sobre elles, e arrancando do espadão que trazia, deu um salto para diante do visconde, que se pozera encostado a uma parede com as duas pistolas, armadas nas mãos.

Os cinco assassinos chegaram n’um momento a elles. Manuel fez um rodizio, e conseguiu fazê-los recuar. Travou-se então uma lucta desigual e de morte. A espada de Manuel brilhava como um relampago, ora em rodizio, ora procurando de fio ou de ponta o corpo dos contrarios. Mas estes armados de compridos varapaus esquivavam facilmente o corpo, e o velho soldado começava já a sentir-se cançado com os esforços sobrenaturaes que se via obrigado a fazer. N’um só momento que tomou de descanço um dos varapaus cahiu-lhe em cheio sobre a cabeça. O velho soldado cambaleou. O visconde porém conservava todo o sangue frio; apontou uma das pistolas, e desfechou. Um dos homens cahiu. A impressão que esta morte causou nos assassinos, foi preciosa para Manuel Gomes, que tomou fôlego, e conseguiu reconquistar a primitiva destreza. Mas a lucta era desegual de mais para durar muito tempo indecisa ; Manuel Gomes começava a fraquear de novo, o visconde tinha desfechado sem exito a segunda pistola… tudo estava perdido.

Uma circumstancia porém inesperada veio fazer pender a Victoria para o lado dos quasi vencidos. Um caminhante que subia n’este momento a estrada do lado de S. João da Madeira, mal viu o combate, metteu o cavallo a galope para elle. Infelizmente o visconde que tinha carregado novamente as pistolas, desfechou terceiro tiro, e a bala foi bater na cabeça do cavallo do recem-chegado. Este veio portanto a terra; mas não desanimou ; desembaraçou-se do cavallo, e correu com uma espada na mão para o lado de Manuel Gomes.

Este ao vêr-se soccorrido, tomou alma.

— A elles, camarada — gritou o velho soldado. A resposta do recem-chegado foi um golpe de tal jaez sobre, o craneo de um dos bandidos, que lh’o abriu até os dentes. Manuel Gomes correspondia ao mesmo tempo a esta cortezia, talhando com um golpe de soslaio a cara de um salteador, que se tinha desviado com mais tento, mas ainda assim não tanto a tempo, que não apanhasse no rosto todo o rigor de um gilvaz.

N’esta occasião assomou na estrada um outro cavalleiro.

— Narcizo ! — gritou o que tinha chegado primeiro.

Os bandidos lançaram-se então a fugir, e aquelle a quem tinham chamado Narcizo partiu á brida em perseguição d’elles.

Ainda elle não tinha tido tempo de chegar da perseguição em que se empenhava, e o visconde mal podéra ainda serenar de modo que podesse agradecer ao seu salvador