Soldados franceses desarmados a varapau

Em semelhantes circunstancias qualquer exercito, por mais bravo que seja, não passa de um tímido e desprezível rebanho, e era neste estado que o exercito frances tinha marchado de Espanha para Portugal, e assim se aproximava da capital deste reino. Se uma voz de alarme se levantasse entre os habitantes do país semelhante exercito seria infalivelmente disperso e aniquilado. E com efeito, casos houve, em que grupos de dez e doze soldados, armados de espingardas, se deixaram desarmar por dois e três paisanos: munidos do seu varapau, os campinos do Ribatejo, também pela sua parte fizeram boa colheita, espancando e matando um bom numero deles, e a não serem as medidas de vigilância tomadas pelas autoridades locais, muito maior numero de vitimas teria logo tido lugar entre os invasores, que á maneira de um formigueiro se viam ir desfilando uns atrás dos outros ao longo da margem do Tejo.

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“Historia da guerra civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal. Segunda Época, Guerra da Peninsula, Tomo I” – Simão José da Luz Soriano (1870)


 

Lenda do Buraco dos Franceses

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(Cova dos Franceses – Vale de Madeiros)

Há em Vale de Madeiros, no caminho que desce para o rio uma bifurcação, que termina de modo brusco, numa ravina. Chamam a este sítio buraco ou cova dos france­ses. Conta a lenda que, aquando das invasões francesas, um destacamento do exército de Massena, passou por aqui para fazer os seus saques. A população não lhes resistiu, pois não tinha como e até lhes deu comida e muito vinho. Por isso todos os soldados apanharam uma grande bebedeira. Foi então a vez dos habitantes que, armados de foices e varapaus, empurraram a legião para a dita ravina, livrando-se dos franceses, ainda que pelo preço de muitos quartilhos de vinho.

História contada pelo falecido Sr. João Duarte
por Ana Mouraz – Canas de Senhorim “Os Lugares e os Nomes”
Edição do Núcleo Filatélico da AHBV Canas de Senhorim

Nobre sacrifício guerreiro

Apesar de uma arma de ultimo recurso devido à óbvia vantagem das armas de fogo, o varapau o chuço e a foice (roçadora) eram as armas em maior número nas mãos do povo português.

Quatro valorosos portugueses, desprovidos de armas de fogo e apenas com as suas foices (roçadoras, calcula-se), sacrificaram-se, certamente conscientes da inevitabilidade da sua morte, entrando na boca do dragão, armados com esta rudimentar arma. Porém, não terá sido um acto isolado, como o já citado, general Napier

«Veementes na cólera e estimulados […], precipitam-se das montanhas como homens privados da razão e muitos irrompiam furiosamente pelos batalhões franceses, onde eram mortos.»

“Resultou destes diferentes ataques ser livre a capital do Porto, pôr-se em fugida um General experimentado, que comandava esses chamados valorosos vencedores de Marengo, Austerlitz e Jena, sendo acossados por Paisanas descalços, armados pela maior parte de foices, chuços e paus; vermos seguras de invasão as províncias do Minho e Trás-os-Montes; 

(…)
Morreram da nossa parte 4 valorosos homens, perda considerável pelo seu valor, o qual os sacrificou até ir com uma foice no Peso atacar-lhe as fileiras;”

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Minerva Lusitana, n.º 9 , de 21 de Julho de 1808

Guerrilhas de varapau ajudam a deter Junot

A 17 de Julho Loison tem ordens de Junot para aniquilar a insurreição do Norte, dirigindo-se para o Porto. Leva 2.600 homens, boa cavalaria e 27 carros de bagagem e armamento. Chega a 20 a Lamego que se rende, segue para a Régua, onde instala uma guarnição e em seguida para Mesão Frio, onde entra com 8 peças de artilharia. Quer continuar para Amarante, chega aos Padrões da Teixeira e enfrenta tropas desordenadas de Francisco da Silveira: os voluntários do seu cunhado, Gaspar Teixeira e milícias de Vila Real, a guerrilha de Ascanho e voluntários de Miranda, Guimarães e outras milícias com os seus fidalgos. A retaguarda de Loison é investida com estratégias de guerrilha e vai confrontando emboscadas a sul de Padronelo, por vezes efectuadas por paisanos armados de paus, como o grupo de homens de Canelas. Destroem peças de artilharia, roubam e inutilizam a pólvora, bagagens e carruagens, matando o ajudante de Loison, que confundem com ele. O objectivo é desorganizar o exército francês impedir que Loison chegue ao Porto, o que conseguem. Loison regressa à Régua e pelo caminho até Almeida incendeia e mata quanto aparece. (…)

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Maria do Carmo Serén – “Carisma e realidade do General Francisco da Silveira Um militar de carreira em momento de viragem” Revista da Faculdade de Letras, HISTÓRIA, Porto, III Série, vol. 10- 2009, pp. 91-102

Cuisine Française

Havia um homem que, à passagem dos franceses, se escondeu num cipreste antigo, tendo aí permanecido até que vencido pela fome e pela sede, saiu por fim do esconderijo, dirigindo-se então para a sua casa, que ainda distava algumas centenas de metros. Pelo caminho, eis que o cheiro a comida, vindo de sua casa, lhe encheu as narinas. Munindo-se de um pau, entra em sua casa e encontra um francês, que se entregava às lides culinárias e que ficara por cá depois da retirada dos franceses. O homem, vendo o  francês de costas, arruma-lhe uma grande paulada na cabeça, à qual o francês teve morte imediata. A comida, essa bem cheirosa, estava ali pronta para aquele estômago faminto.

Lenda do marmeleiro do francês

Aquando da primeira invasão francesa o exército invasor seguia do Covilhã em direcção a Castelo Branco. 

Sendo informados da resistência que os guardava na Soalheira, alteram o seu itinerário. No Salgueiro do Campo o povo escondeu-se onde podia, levando consigo alimentos e pequenos tesouros, pois os Franceses eram vistos como filhos de Mafarrico. A resistência foi feita com a organização de pequenos grupos, tendo ficado um pequeno destacamento Francês no Salgueiro. O mesmo foi despachado aquando da vitória Anglo-Portuguesa sobre a França.

Quando a alegre notícia da expulsão dos Franceses chegou ao Salgueiro logo o tirano Francês foi duramente castigado. Após ter sido espancado foi enterrado vivo perto do cemitério. No local foi enterrada a vara de marmeleiro que ganhou raízes e se transformou num grande marmeleiro, a que se chama o marmeleiro do Francês.

http://salgueirodocampo.planetaclix.pt/marmeleiro_frances.htm

Vá de malhar nos de França

Veio um almocreve do Norte e pôs-se a tartamudear em voz baixa um conto atrapalhado sobre a desgraça que o Maneta Loison levou às Caldas da Rainha. Que arcabuzaram nove soldados portugueses do Regimento do Porto lá aquartelados, por uma zaragata de vintém, começada com um beijo roubado por um francês bexigoso à mulher de um tambor carrapato e zangaralhão, mas fortalhaço e sanguinho, que saltara à bordoada ao bexigoso.”...

Vieram companheiros e vá de malhar nos de França, que todos vinham com moléstias de pele, sarnas e borbulhas, a abeberarem-se nas águas santas. Pior que feira varrida à paulada, quando os franceses responderam e se zangou um cadete de Gaia que parecia um touro de cajado nas unhas, que até nem se entende como não houve morte de homem.”

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“Razões do coração” – Álvaro Guerra (1991)

Jacinto Correia

Lugar de Atouguia, Gorcinhos – Mafra, finais de Janeiro de 1808: ao final da manhã, o jornaleiro Jacinto Correia, habitante da área, de 46 anos, casado e com filhos, dirige-se, como habitualmente, para casa com o produto do seu trabalho. No caminho, é abordado bruscamente por dois soldados franceses que o pretendem roubar. Jacinto Correia não teme e não cede, segue-se uma violenta luta entre os três homens. O jornaleiro saloio, homem de rija têmpera e habituado ao trabalho duro do campo, habilmente e com raiva, brande a foice roçadora que transporta e golpeia mortalmente os dois soldados que o atacaram.

Em pouco tempo, uma força militar francesa detém Jacinto Correia, que é presente a tribunal e julgado num Conselho de Guerra. Apesar de algumas autoridades locais tentarem o perdão do jornaleiro, o Tribunal empurrou o processo para uma incriminação do réu, que impunha punir exemplarmente.

Em determinada altura do julgamento, porque o jornaleiro apresentava uma atitude de serenidade e desafio, foi-lhe perguntado por Loison, “se o arrependimento já tinha exercido algum efeito no seu espírito”. A resposta, tão convicta como desconcertante, “se todos os Portugueses fossem como eu, não ficaria um francês vivo”

Jacinto Correia foi condenado à morte e fuzilado no campo da Alameda, no topo sul do Convento de Mafra, a 25 de Janeiro de 1808


Paisano dos arredores de Mafra

Invasões Francesas

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Lendo as obras de Oman, Weller ou Southey apenas ficamos a conhecer a Guerra Peninsular na perspetiva do comando britânico e, ainda assim, no que toca às operações da guerra convencional. A guerrilha, a sabotagem, a terra queimada entram mal nesta História. O povo e o país pouco mais são que o cenário ao fundo do palco onde é encenada a epopeia de Wellington e do seu exército. O mais que os portugueses do exército anglo-luso podem aspirar é o prémio para melhores atores secundários.

A guerrilha em Portugal foi mais dispersa (do que em Espanha) mas nem por isso impressionou menos os estrangeiros. A fúria dos camponeses nortenhos é assim descrita pelo general britânico Napier: «Veementes na cólera e estimulados […] pelas exortações dos seus padres, precipitam-se das montanhas como homens privados da razão e muitos irrompiam furiosamente pelos batalhões franceses, onde eram mortos. Outros […] rodeavam as montanhas e, caindo sobre a retaguarda, matavam dezenas de soldados tresmalhados e pilhavam as bagagens.»

O efeito da guerrilha em Portugal não foi negligenciável. Desgastou o invasor e obrigou-o a desviar das missões principais forças importantes, empenhadas em manter as guarnições em contacto e as estradas praticáveis. 

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Conta o barão de Thiébault, quartel-mestre do marechal Soult, a propósito do avanço sobre o Porto, em março de 1809: «A marcha do II Corpo pode comparar-se à de um navio no alto mar. Ao mesmo tempo que vai fendendo as ondas, estas vão-se cerrando atrás dele […] minutos depois da sua passagem, não resta nenhum vestígio dela.»

António José Telo, um dos autores citados na coletânea Guerra Peninsular, Novas Interpretações, vai mais longe: «Os autores ingleses que escreveram sobre a Guerra da Península só falam, praticamente, da atividade da primeira linha, pois era aí que estavam os britânicos. Muitos autores portugueses mais tradicionais cometem o mesmo tipo de erro e praticamente não mencionam ou consideram meramente acessória e quase folclórica a atividade de guerra irregular no teatro das operações de Portugal […] A guerra irregular foi um elemento muito importante para derrotar as Invasões Francesas em Portugal, embora, para que ela se pudesse exercer, fosse necessária a ação do exército de primeira linha.»

Povo

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Guerrelheiro de varapau em Monumento- “Ao Povo e aos heróis da guerra peninsular 1808 – 1814” – Lisboa.

Em 1808 Portugal não tinha exército para opor à França, não o tinha antes de a invasão de Junot se concretizar, muito menos ele existia em meados de 1808. Mas havia a alma do povo. Povo que viveu longos meses preocupado em sobreviver a um amargo quotidiano, suportou a intrusão estrangeira porque assim lho exigiram, «engoliu» o abandono da Família Real, aguentou a colaboração das «classes superiores». Mas a nostalgia deu lugar à raiva, que cresceu com a obrigatoriedade de dar pão e cama a um intruso agressivo, contribuir com os seus parcos rendimentos para a ostentação e sustentação do invasor, tolerar sevícias de toda a ordem e a toda a hora ao usurpador, ver a Monarquia Lusitana ser extinta e substituída por um certo Napoleão. Sentimentos acumulados que foram sendo libertados e que acabaram por explodir de forma generalizada e incontrolável.

Como o povo não tinha um exército que o enquadrasse, tornou-se ele próprio o exército, camponeses, pescadores, carpinteiros, serralheiros, milícias, e ordenanças, oficiais, padres, tudo gente vilipendiada, ferida no seu orgulho, munidos de artefactos domésticos como machados, varapaus, roçadoras, foices, martelos, facas, uma ou outra arma de fogo. O povo era o exército, anárquico mas motivado, rudimentar mas disponível, violento mas generoso.

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Decreto do Conselho de Regência (Dezembro de 1808):
 “(…) Sou servido determinar que toda a Nação Portugueza se arme pelo modo que a cada hum for possível: que todos os homens, sem excepção de pessoa, ou classe, tenhão huma espingarda, ou pique, e todas as mais armas que as suas possibilidades permitirem. Que todas as cidades, villas, e povoações se fortifiquem, para que, reunindo-se aos seus habitantes todos os moradores dos lugares, aldêas, e casaes visinhos se defendão alli vigorosamente quando o inimigo se apresente. Que todas as companhias se reunam nas suas povoações todos os domingos e dias santos para se exercitarem no uso das armas que tiverem e nas evoluções militares, compreendendo todos os homens de idade de quinze anos até sessenta anos (… )”

Portanto, a partir de meados de 1808, o povo pegou em armas contra o exército  regular de Junot e travou-se uma luta desigual, do fraco contra o forte, da anarquia contra a organização, da violência apaixonada contra a repressão. Travaram-se combates irregulares e estes «soldados sem uniforme» e «assassinos de estrada», como mais tarde chamou Massena a esta «turba popular», emboscavam os franceses a partir dos montes, assaltavam contingentes que marchavam imberbes em caminhos de difícil transitabilidade, acometiam de rompão vindos de matas densamente arborizadas.

Soult entrou em Portugal com cerca de 30.000 homens e retirou com perdas consideráveis de quase 50% sem que tais baixas se devam essencialmente a combates clássicos.

A Guerra Subversiva é tão antiga como a guerra em si; a Guerra Subversiva entronca geneticamente no ser português. De Viriato a Geraldo sem Pavor, de Deu-la-Deu Martins à padeira Brites de Almeida, do Frei Heitor Pinto a Jacinto Correia, portugueses há cujo ânimo apaixonado não deixam a Nação perecer, mesmo se eles perecerem.

“Adeus, meu Napoleão,
Que é quasi meia-noite,
Achaste em Portugal
Quem te désse muito açoite”

cit. Raul Brandão

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Jornal do Exercito N572

Invasões Francesas 200 anos.Mitos, Histórias e Protagonistas” Rui Cardoso

A Invasão de Soult e A Reconquista de Chaves aos Franceses” Tenente-coronel Abílio Pires Lousada

“A Invasão de Junot e o Levantamento em Armas dos Camponeses de Portugal. A Especificidade Transmontana” Tenente-coronel Abílio Pires Lousada

A milícia nas invasões francesas – Alexandre Sousa Pinto

Trás-os-montes e a Guerra da Restauração

Já no tempo da Guerra da Restauração a população transmontana era um pouco deixada às suas sortes, armada com o que tinha, as suas ferramentas agrícolas, para lutar pela independência do território nacional.

Principais Acções no Teatro Transmontano
 
Aspectos Gerais
 
O desenvolvimento da guerra em cada um dos teatros, que não o alentejano, dependia, como já se aflorou, dos meios que localmente se podiam reunir e da evolução que naquele, o principal, se verificava. De facto, o dispor-se neles de tropas, de armas e de comandantes dependia por vezes do que, cautelosamente, se pudesse retirar da província do Alentejo e, ainda, da necessidade e possibilidade de distrair meios para o seu reforço. Mas, apesar de Carlos Selvagem e outros historiadores, como se apontou, considerarem no quadrante nordeste alentejano quatro fases da guerra em face das resultantes políticas e estratégicas e das tácticas seguidas, não resta dúvida de que no conjunto do território e do ponto de vista estratégico, operacional e logístico‑administrativo essas fases se terão inserido mais claramente em apenas duas: a primeira, de 1641 a 1659, antes da chegada do Conde de Schomberg, e a segunda, de 1660 a 1668, com este general até ao termo da luta, ambas tendo a apoiá-las ao nível do governo do Reino, como organizador e administrador, enquanto não foi afastado, o Conde de Castelo Melhor.
 
Sistema de Luta
 
Sujeito, portanto, aos deficientes e sempre magros factores de defesa locais e aos que decorriam da luta nos outros teatros, o teatro de operações de Trás‑os‑Montes, logo a partir de 1641, apesar dos trabalhos de preparação da sua defesa imediatamente encetados no cumprimento das ordens reais, encon­trava‑se em muito mau estado quanto à organização e preparação das tropas, estas agravadas, como já se referiu, pela obrigatoriedade de entrega das armas pelos populares que as possuíam, deixando-lhes praticamente só os seus artefactos agrícolas e outros para “darem largas aos seu ódio contra os irmãos‑inimigos”.
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A Guerra da Restauração (1640-1668) no Teatro de Operações Transmon­tano.
Através das “Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança” por Francisco Manuel Alves (Abade de Baçal)

1 de Dezembro – A restauração e a esgrima em Portugal

A 1 de Dezembro celebra-se a Restauração da Independência de Portugal que, em 1640, pôs fim à dinastia espanhola neste país.

No contexto da esgrima na península Ibérica, desde 1587 que Don Jerónimo de Carranza, com a sua obra “Filosofía de las Armas”, conseguiu criar uma nova forma de praticar a esgrima, intitulada “La Verdadera Deztreza”, tratado que se impôs e fez esquecer tudo o que havia antes, considerando a esgrima do passado como “antiga” ou “vulgar”. Esta nova esgrima dedicava-se quase exclusivamente a espadas manejadas a uma mão, um processo que estava já a acontecer por toda a Europa.

No entanto, não lhe tirando o mérito, fez provavelmente esquecer um tipo de esgrima mais antiga, com armas a duas mãos e que tratava de situações diferentes do duelo um contra um.

Em 1651, Dom Diogo Gomes de Figueiredo, General de Artilharia português e mestre de esgrima, escreveu um manual de esgrima com espadas a duas mãos (o montante) que, calcula-se, tentava um pouco reviver essa esgrima mais antiga, olvidada pela obra e expansão da esgrima protelada pelo mestre espanhol. Dom Diogo Gomes de Figueiredo não só bem conhecia a Verdadera Destreza, pois também era mestre de esgrima, como também a antiga esgrima, com armas a duas mãos, e outras situações que tratava esta esgrima vulgar. E foi sobre essa esgrima já no seu tempo a cair na obscuridade, que decidiu tratar no seu manual.

As situações de combate a que se referiu são as de combate em inferioridade numérica. Como exemplo deixo aqui algumas situações referidas no manual de Dom Diogo:

“He esta regra para brigar com gente por detraz e por diante (…)”

“Serve esta regra para brigar em hua rua larga com gente por detras o por diante (…)”

“Serve esta regra para deter gente em hua rua e impeder que não passe de hua parte para a outra.(…)”

Estas são as situações tratadas também, e muito extensivamente, no jogo do pau português, no chamado jogo do norte, que retrata o combate em inferioridade numérica, estando geralmente cercado de adversários. E este é também o tema do primeiro manual verdadeiramente de jogo do pau de 1886.

Assim, Dom Diogo Gomes de Figueiredo, movido provavelmente pelo renascer de uma nação, reflecte uma quase perdida arte de combate. Este seu trabalho não chegou infelizmente a ser publicado, e a esgrima de espada evoluiu inevitavelmente para a que conhecemos hoje, mas as situações tratadas por este autor sobreviveram na esgrima do varapau sendo praticado até aos dias de hoje, uma prática quase esquecida em outros tipos de esgrima, seja europeia ou de outras partes do mundo.

Outros autores, mas muito poucos, trataram deste tipo de esgrima a duas mãos, contra vários adversários, sendo esta obra um elemento essencial entre não mais que duas ou três outras, que nos permite perceber que a prática actual do jogo do pau não foi uma invenção recente, dos últimos 2 séculos, sendo já uma prática comum muito antes de termos conhecimento do jogo do pau como é conhecido na literatura desde o século XIX.

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Memorial Da Prattica do Montante Que inclue dezaseis regras simples, e dezaseis compostas Dado em Alcantara Ao Serenissimo Principe Dom Theodozio q. Ds. G. de Pello Mestre de Campo Diogo Gomes de Figueyredo, seu Mestre Na ciencia das Armas Em 10 de Mayo de 1651

José Maria da Rocha, antigo mestre de Terras de Bouro

O concelho de Terras de Bouro, situado em pleno coração do Parque Nacional da Peneda-Gerês e percorrido pelas bacias do Cávado e Homem, é riquíssimo em história, tradições e paisagens deslumbrantes.

José Maria da Rocha, mais conhecido pelo senhor Rocha foi um exímio jogador do pau. Este terrabourense nasceu em 19 de Março de 1929 no lugar do Assento na Freguesia de Cibões. Com apenas 9 anos de idade foi servir como moço de lavoura para a freguesia de Santa Isabel do Monte onde lhe pagavam um salário anual de 300$00. Com 13 anos vai trabalhar para a casa do Feixa, em Vilarinho da Furna, e vê o seu salário anual aumentado para o dobro. Em Vilarinho, as suas principais tarefas eram regar os campos de milho e guardar as cabras na serra. Aos 14 anos decidiu encontrar melhor sorte em Lisboa. Na capital, começou como ajudante de cozinha numa pastelaria de fabrico para revenda. Mais tarde foi trabalhar para a pastelaria Áurea, na rua do Ouro, e a seguir trabalhou na pastelaria Marques na Avenida Almeida Garrett. Foi com colegas seus da cozinha que aprendeu a assinar o seu nome porque na sua infância não havia escola.

Inicia a sua actividade de cozinheiro propriamente dita no Hotel Florida onde permanece até a ida para a tropa. Cumpre o serviço militar na Base Aérea nº1 de Sintra e volta ao Hotel Florida. Volvidos três anos, muda para o Hotel Espadarte em Sesimbra e mais tarde para o Hotel Turismo da Ericeira. Esta itinerância nunca se deveu ao facto de não gostar de trabalhar nestes locais ou de ser preguiçoso, mas à procura de melhor salário. Foi somente em 1951 que obteve os seus primeiros oito dias de férias. O senhor Rocha trabalhou como cozinheiro ainda noutros locais e chegou a viver a aventura da emigração em França durante cerca de sete anos.

Hoje, na reforma ajuda e apoia a sua esposa que devido a um glaucoma praticamente se encontra cega.

O senhor Rocha confidenciou à reportagem do “Geresão” que a reforma de França, com descontos apenas de sete anos, é bem maior do que a reforma portuguesa. “Após 38 anos de trabalho na indústria hoteleira, a pensão de França é mais do dobro que a pensão da hotelaria”.

Afirma com tristeza que “a freguesia de Cibões está envelhecida, as casas dos lavradores estão vazias, as alfaias agrícolas estão paradas e os campos ao abandono. Dantes era gente por todo o lado, agora é uma miséria.” No entanto, considera que há actualmente aspectos positivos “porque temos luz, telefone e estradas.” Insiste em comparar o passado com o presente: “Dantes era tudo cheio de gente. Agora, toda a gente foge. A lavoura não dá quase nada. Uma profissão que vai dando ainda é a de cozinheiro, mas tem que se fugir daqui.”

Foi em Santo António de Missões da Serra que o senhor Rocha aprendeu a jogar o pau com José Pelote e também com o João Quinteiro de Bergaço. Queixa-se da falta de reconhecimento. “Nunca foi feita uma homenagem a qualquer um dos jogadores de pau do nosso concelho e nunca nos deram a conhecer. O João Quinteiro foi para mim o maior jogador do nosso País.”

joserocha

Em Lisboa, na década de 50 o senhor Rocha inscreveu-se no Ateneu Comercial tendo recebido aulas do mestre Domingos Miguel e do contramestre António Antunes Caçador. Frequentou esta escola durante 30 anos. Fez demonstrações no Estádio da Luz, nas festas de Vila Franca de Xira no Pavilhão dos Desportos, e em muitos outros locais.

Actualmente ainda recebe inúmeros convites para fazer demonstrações, mas as pernas já não o ajudam.

O senhor Rocha fez questão de mostrar à reportagem do “Geresão” a sua infindável colecção de varas. São às dezenas. Há varas para todos os gostos. Umas são de lodo, outras de junco e outras de marmeleiro. Parte delas foram feitas pelas suas mãos. “A protecção de metal que as varas têm nos extremos são para não esgaçarem”, explicou o senhor Rocha.

No que concerne ao jogo do pau esclarece que “isto não é um jogo de pau, mas esgrima do pau nacional que já vem do tempo do rei D. Carlos (finais do século XIX e princípios do século XX).”

Foi há 26 anos atrás que criou, na vila de Terras de Bouro, a convite do Presidente da Câmara Municipal, José Araújo, a escola do jogo do pau que veio a funcionar regularmente durante oito anos. Esta escola terminou, apesar do número sempre elevado de alunos, devido ao problema de artroses que começaram a limitar a sua mobilidade. “Porque as voltas que o pau dá por cima no ar, as pernas têm que dar as mesmas voltas por baixo.” As pernas mataram-lhe outra das suas grandes paixões: a caça porque não lhe permitem longas caminhadas pelos montes de Cibões.

“Foram oito anos de professor”, recorda com saudade. Mobilizou muitos jovens terrabourenses para a prática do jogo do pau. No nosso concelho e noutros locais, o senhor Rocha e os seus pupilos fizeram inúmeras exibições. Recorda-se com carinho de todos os seus alunos e destaca o Luís da Souta e o Álvaro do Pereirinha que eram jovens muito empenhados e assíduos.

Jogou o pau com indivíduos de Espinho, Melgaço, Sesimbra e de outras localidades do nosso País e foram muitos os episódios caricatos. Uma vez jogou o pau com um indivíduo chamado Adelino Barroso na vila de Terras de Bouro. Foi num dia de feira, na “Leira do Sousa”, por debaixo do Escola Padre Martins Capela depois desse indivíduo o ter desafiado. O Adelino Barroso atirou-se muito impetuoso e o senhor Rocha foi desviando o seu corpo das varadas. Deixou-o entusiasmar-se e o resultado “foi ter rachado a cabeça ao Adelino Barroso com uma boa varada”.

Uma outra vez estava a jogar o pau com um indivíduo que lhe atirou uma varada, conseguiu desviar-se, mas o outro jogador cortou-lhe o cinto com a pancada.

Muitas vezes chegou a estar cercado por quatro ou cinco homens, mas defendeu-se sempre “porque as pernas ajudavam”.

O senhor Rocha aconselha a nossa juventude a valorizar o que é tradicional e aprender o jogo do pau. “O jogo do pau faz parte da nossa tradição e pode ser usado em legítima defesa. Mas, hoje, não há quem queira aprender a tocar cavaquinho, por exemplo, ou aprender outra coisa qualquer. O que é tradicional, infelizmente, vai morrendo aos poucos.”
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Publicado no jornal o “Geresão” em 20 de Janeiro de 2006.